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Corpo Presente, um livro de João Paulo Cuenca

GVcult

11/12/2014 09h00

Por Renata Noronha Cóssio.

Sobre o livro

Corpo Presente, primeiro livro do escritor brasileiro J.P. Cuenca, publicado em 2003, tem apenas 140 páginas. Seus capítulos são curtos e secos, regidos por uma abstração extrema; existe um caos omnisciente, iniciado já pela pessoa narrativa. Nunca sabemos ao certo quem está a nos contar a história. Esta, por sua vez, não tem inicio, fim ou começo demarcados, da forma como estamos acostumados.

Somos jogados ao ar com três personagens: o narrador, Carmem e Alberto. As vezes, o narrador parece ser Carmem; outras vezes, Alberto; outras ainda, ele mesmo. Em alguns momentos, ele é amante de Carmem, enquanto em outros é seu filho ou mesmo seu pai. Alberto, por sua vez, aparece tanto como o marido traído de Carmem quanto como um amigo do narrador. Este jogo de três, uma tríplice aliança desconexa que está sempre dando origem a novas formas, está unido a disposição dos capítulos do livro, numerados apenas com números primos, divisíveis apenas por um ou por eles mesmos (1, 3, 5, etc.).

A figura de Carmem merece destaque, pois de certa forma ela carrega toda a narrativa e representa possivelmente todas as mulheres que o narrador já encontrou. É ela quem o inspira, é ela quem o machuca; é ela  quem o ama, é ela quem o rejeita, sempre ela. Ela é sua mãe, sua amante, sua puta. Ela está viva, mas também está morta; está longe, está perto, está em todo lugar e em nenhum lugar.

Esta ambiguidade cega em busca de sua ausência motiva toda a escrita, pois sem ela, resta apenas o tédio – para o narrador, a vida se faz em Carmem e somente nela. Nada mais lhe faz sentido: vários capítulos mostram ele clamando escrever por ela, para ela, uma vez que ela é sua única verdade. Apesar disso, outros capítulos, mais sóbrios talvez, o fazem admitir que se a encontrasse já não teria mais um motivo para escrever – então talvez ele não esteja realmente procurando.

Carmem é, portanto, um ideal inalcançável, inexorável. Perdido em devaneios, existe também a possibilidade de ela nunca ter existido realmente, de ser apenas um objeto abstrato, um nome que o narrador dá para todas as suas experiências amorosas ou sexuais, pois entendemos, de alguma forma ou outra, que ele é um escritor dado a muitos vícios e orgias, que passa muito tempo sem ver a luz do dia.

Temos, então, em Corpo Presente uma literatura contemporânea aprimorada por um escritor com estilo único. Nele somos constantemente forçados a esquecer nossa tendência a completar a estória a partir de nossas próprias experiências, pois não estamos sendo confrontados por algo linear ou tradicional. Os capítulos, primos e curtos, são como peças de um quebra-cabeça a nos desafiar, sempre com a possibilidade de acabarem por não formar imagem nenhuma.

 

Um "Modernismo Contemporâneo"?

Jean-Jacques Rousseau foi o primeiro a cunhar o termo modernista no sentido que conhecemos hoje: "todos se colocam em contradição consigo mesmos e tudo é absurdo, mas nada é chocante, porque todos se acostumam a tudo". Marshall Berman, por sua vez, denota que a modernidade se concretiza realmente por volta do século XIX, momento no qual o "individuo ousa individualizar-se", como escreveu Nietzsche. Entrando no século XXI, percebemos com clareza esta individualização se tornar menos uma ousadia e mais o esperado, com o eu quase sempre ganhando prioridade sobre o nós, sobre a comunidade, banalizando a vida em conjunto.

Um possível advindo deste egocentrismo latente seria o diálogo interior de Dostoiesvki em Notas do Subsolo. Em um momento do livro, o homem subterrâneoremarca o medo de chegar ao fim de seu objetivo. Ele admite que o homem ama construir, mas levanta a possibilidade dele não querer viver em sua construção – a contradição a que se referiu Rousseau. Corpo Presente, escrito um século e algumas décadas depois, não deixa de trabalhar com este mesmo enigma. Estamos diante de um narrador que foge constantemente da realidade, que se recusa a encará-la diretamente, e que busca em uma figura abstrata e móvel – Carmem – todo o sentido para a vida, apesar de não querer encontra-la realmente.

A alienação é um elemento constante. Embora Cuenca não deixe sempre claro a linha narrativa que segue, ele utiliza-se do cenário do Rio de Janeiro quase que como uma quarta personagem para descrever como o narrador despreza o dia-a-dia, a rotina que faz tudo parecer igual. Ele cita os bairros da cidade de forma quase metafórica para exemplificar a mecanização das pessoas, como elas se tornam engrenagens dentro de um sistema ao qual o narrador recusa-se a integrar diretamente e que o aborrece o tempo todo. Para tentar se sobressair desta rotina entediante, o narrador descreve duas experiências diferentes, intercalando-as no livro.

A primeira é sua ida a um baile funk com Alberto, no qual ele se sente um "intruso", mas no qual consegue se libertar de todas as suas inibições e realizar seu objetivo de participar de algo prestes a se tornar popular (estar "a beira do precipício", antes das massas). A segunda é uma visita a exposição do trabalho de um exclusivo artista de vanguarda, autointitulado ( ) e que nunca apareceu em publico. ( ) faz esculturas com moedas e está colocando-as a venda pelo preço de custo em um salão chique com open bar, totalmente oposto as quebradas da favela onde rolava o baile uma página antes.

Temos, então, um narrador que transita por vários mundos, mudando conforme a necessidade. Talvez ele seja, realmente, um possível resultado do modernismo de Rousseau no século XXI: um produto urbano que perdeu toda a aura romântica e tornou-se um cínico realista que não se choca com nada e se adapta a tudo, muito distante do ideal do "nobre selvagem" tão prezado pelo pensador suíço.

 

Cuenca e a Literatura Brasileira Contemporânea

Wander Melo Miranda afirma que a literatura brasileira já não funciona mais como "uma alegoria do nacional", em seu artigo Ficção Brasileira 2.0. De modo análogo, em Corpo Presente o narrador, perdido como está em si mesmo e em relação as outras personagens (Carmem e Alberto), não procura em momento algum apresentar alguma definição de identidade nacional ou construir algum arquétipo do que é ser, especificamente, brasileiro, como fazia José de Alencar em 1860 ou os modernistas da década de 1930. Ele está ocupado demais com sua própria subjetividade, representando assim a quebra de paradigma descrita por Miranda.

Neste contexto, é possível conectar a obra de Cuenca aos trabalhos feitos por outro escritor contemporâneo, Nuno Ramos. Miranda descreve os textos de Ramos como "livros de alta carga poética, portadores de revelações inesperadas". Tais adjetivos poderiam ser utilizados para definir Cuenca, pois sua literatura abstrata e hibrida beira, realmente, como diz Miranda em relação a Ramos, o ensaístico. É possível ler capítulos de Corpo Presente separadamente, como se fossem contos ou ensaios, e eles ainda seriam interessantes, tendo valor por si só.

Outro paralelo interessante a se fazer é com Reinaldo Moraes. Em Pornopopeia, livro publicado em 2009, Moraes também trabalha com um narrador extremamente egocêntrico, mas com uma linguagem mais simples e direta e uma veia cômica que não aparece muito em Cuenca. Apesar da diferença linguística, as narrativas se completam por retratarem dois contadores de historia que não trabalham ou realizam algo produtivo, passando o seu tempo com orgias e o uso de drogas.

Zeca, o protagonista de Pornopopeia, pode ser descrito como alguém que não tem nenhum superego. O narrador de Corpo Presente, por sua vez, pode não ser tão desprovido, mas peso na consciência não é um fator suficientemente forte para deixá-lo de viver a vida como bem entende. Nenhum dos dois autores apresenta algum tipo de julgamento ou fatalismo em relação as ações tomadas pelas personagens; ha uma aceitação de suas escolhas que talvez leve a crer que a sociedade atual esteja a caminhar para valores mais liberais.

Com Corpo Presente, Cuenca se encaixa, portanto, no contexto da literatura brasileira atual, junto a autores de peso, como Ramos e Moraes. Ele caminha por uma trilha nova, de introspecção e subjetividade universal, sem apresentar preocupação direta com a construção de uma identidade ou visão para o Brasil. Isto não é necessariamente algo bom ou ruim, simplesmente diferente, pois, como escreveu Ianni, toda literatura é de algum modo uma representação de seu tempo, implícita ou explicitamente.

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Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

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O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.

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