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O tempo nas narrativas da literatura de cordel

GVcult

02/09/2014 09h00

Por Bernardo Buarque de Hollanda. 

Os três últimos textos de nossa coluna foram dedicados à literatura oral, tendo por base a obra de autores internacionais do quilate de Paul Zumthor, Roger Chartier e Walter Benjamin. A coluna de hoje encerra a pequena série, com referências nacionais acerca da literatura de cordel.

Informações sobre tal gênero literário podem ser encontradas já em estudiosos como Manuel Diegues Júnior e Veríssimo de Melo. A partir de uma característica apontada por esses autores acerca da Literatura de Cordel ─ a de livre comentário sobre as situações as mais diversas vividas no dia a dia ─, podemos pensar a dimensão do tempo nas narrativas de cordel.

Trata-se de ver a Literatura de Cordel em paralelo à sua condição de crônica, esse gênero jornalístico situado "ao rés do chão", como definia Antônio Cândido, herdeiro pródigo do folhetim oitocentista, caracterizado por sua brevidade, simplicidade e humor.

A ambivalência da constituição das fronteiras da crônica, situada entre a literatura e a história, decorre da ligação com seu suporte material, o jornal, em cujas notícias o Cordel também se inspira. Se em seu alvorecer o historiador era o cronista de seu tempo, ou seja, aquele que sabia ver, registrar e ensinar ─ a historia magistra vitae de que falava Cícero ─, hoje o cordelista é aquele que compila e historia os fatos do presente a partir da sua própria percepção da realidade.

Conforme a definição arguta da historiadora Margarida de Souza Neves, que, diga-se de passagem, também foi minha orientadora de mestrado e doutorado: "… a crônica é sempre, e de formas muito distintas, um texto que tematiza o tempo e, simultaneamente, o mimetiza. Tal como a história, aliás."

A leitura de exímios compositores de cordel como João Martins de Ataíde (1880-1959), Francisco das Chagas Batista (1895-1930), Rodolfo Coelho Cavalcante (1917) e Leandro Gomes de Barros (1868-1918), este último muito admirado por Carlos Drummond de Andrade, que lhe dedicou uma crônica no Jornal do Brasil em 1976, na qual elevou o poeta popular a uma posição maior que Olavo Bilac nas letras brasileiras, leva-nos à elaboração das seguintes questões:

1. Como se apresenta, nas narrativas de cordel, a questão da temporalidade?
2. Quais dimensões ela adquire na récita desses cantadores?
3. A que escansões temporais ela remete?
4. Como se interpenetram passado, presente e futuro nesses contos em forma rimada?
5. A que figuras de duração ela se associa: conjuntura ou estrutura, mito ou história, jornalismo ou literatura?
6. De que maneira o tempo ─ esse 'tecido invisível', para empregar a bela expressão de Machado de Assis ─ se inscreve na tessitura dos precários fios do cordel?

Além da sua presença implícita no discurso, o tempo se imiscui no Cordel por um viés característico: a literatura popular condiciona o andamento de sua ação ao ritmo não apenas da poesia e como também da música.

Nas fímbrias entre a narrativa histórica e ficcional, os enredos através dos quais os cordelistas contam as suas 'estórias', para grafar à Guimarães Rosa, valem-se de uma acentuada variedade de tempos, com sua ordem, duração e direção específicas.

Embora o filósofo Benedito Nunes identifique a pluralidade constitutiva do tempo em cinco conceitos diferentes ─ o tempo físico, o tempo psicológico, o tempo cronológico, o tempo histórico eo tempo lingüístico ─, é possível alinhavar três unidades temporais mínimas que nos interessam investigar e aprofundar no âmbito da produção da Literatura Cordel:

1. A factual, ligada a fatos corriqueiros do cotidiano, àquilo que se passa com as pessoas no dia a dia;
2. A histórica, articulada a grandes marcos do passado, a eventos de importância político-social;
3. A mitológica, evocadora da dimensão cíclica e cósmica do homem, relacionada a um tempo pretérito remoto, dificilmente situável na linha cronológica da História. Eis três respectivos exemplos, selecionados ao acaso:

"29 foi o dia

e setembro foi o mês

que morte mais outra vez

com a sua covardia

ofendeu a poesia

de uma maneira tal

um poeta tão legal

dos outros se afastou

e muita gente lamentou

a morte de Pontual."

 

"O grande Getúlio Vargas

Brasileiro cem por cento

Antes de morrer

Cumpriu seu juramento

Deixando pros seus herdeiros

Um riquíssimo testamento."

 

"Numa cidade distante

há muito tempo existiu

um distinto fazendeiro

o mais rico que se viu

e tinham um jovem vaqueiro

homem que numa mentiu."

Esses versos constam do numeroso volume de folhetos catalogados nos acervos da Fundação Casa de Rui Barbosa, que vêm sendo coletados desde a década de 1960, quando o professor da UFRJ, Thiers Martins Moreira, assumiu a direção desse Centro de Pesquisa.

Passados cinquenta anos, esse acervo continua à disposição do pesquisador, que pode familiarizar-se e levantar boa parte desse material precioso, nessa preciosa instituição sediada no Rio de Janeiro.

Edição: Samy Dana e Octavio Augusto de Barros.

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Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

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