Os bastidores dos livros
GVcult
31/08/2014 09h00
Por Luciana Garcia.
Fiquei feliz da vida quando soube que faria uma entrevista, em 2001, para trabalhar em uma das maiores editoras do Brasil – a hoje extinta Siciliano. Hoje, olhando para trás, sinto que, de certa maneira, as coisas infelizmente parecem ter "desevoluído" nessa área. Em época de Bienal do Livro, talvez seja um bom momento para reflexão.
Quando comecei, como revisora, toda a equipe ficava fisicamente na editora: os donos, o publisher, os gerentes editoriais, os preparadores, os revisores, os diagramadores, etc. Com o tempo, tudo foi se terceirizando, e até os fundadores foram "trocados" por CEOs com foco total em administração e marketing. Hoje, estão lá dentro (como já estive) apenas os gestores e os coordenadores de projetos, que administram os vaivéns de todo o fluxo de trabalho.
O resultado, evidentemente, é que se criou, como em muitos outros setores no Brasil, um imenso grupo de trabalhadores autônomos (e quase anônimos), obrigado a administrar seu modus operandi (alguns naturalmente, outros, do modo possível), perdendo a liberdade de acompanhar o desenvolvimento do produto-livro, em todas as suas nuanças e conexões de conteúdo intrínsecas, e, o mais grave: às vezes até mesmo deixando de ser respeitado, graças ao novo modo de relacionamento virtual e impessoal, independentemente de altíssima qualificação e experiência.
E isso não se restringe ao profissional do livro; o mesmo distanciamento foi se estabelecendo, em muitos casos, no contato com o próprio autor. A inter-relação para a construção de um projeto comum foi substituída pela polaridade mandantes-obedecentes; dar atenção, prezar pela qualidade do conteúdo ou conceber um trabalho de desenvolvimento macro são meros detalhes esquecidos ou abandonados.
O mais incrível é que toda essa história triste se relaciona, em sua essência, com um debate a que assisti há poucos dias no Painel da Globo News, em que se discutia quanto a burocratização dificulta a vida do empresário brasileiro e a produtividade nacional. O processo de paralisação econômica que estamos vivenciando continua (entre muitos outros fatores, claro) absolutamente vinculado ao excesso de tributação (cuja reforma sempre é prometida e nunca realizada) e à consequente necessidade de enxugamento e cortes que observamos na área editorial constantemente; é então que os funcionários passam a ter de se virar com o esquema do "Simples" Nacional para se enquadrar, de alguma forma, num código que permita realizar o trabalho para o qual se formou. O irônico é que atividades intelectuais, em geral, por alguma estranha razão, não são permitidas pelo CNAE, e se um profissional exerce, por exemplo, a função de tradutor, esta é simplesmente incompatível com a de revisar ou editar um livro (!).
Em resumo, o profissional do livro, que se forma e estuda continuamente, do qual é exigido conhecimento técnico e cultural top, não pode ser registrado porque onera a empresa (que vende produto supérfluo: o livro), é obrigado a aceitar condições de trabalho aquém de sua capacidade, a aceitar a opção esdrúxula de "free-la fixo" por anos e anos, ou a abrir e manter sua empresa por meios estranhos, nos quais tem de se classificar como alguma aberração técnica para dar entrada a esse processo, e enfim aceitar as condições pré-determinadas por seus clientes – entre as quais pagamento em mais de sessenta dias, a ausência de crédito (literal ou não) por seu trabalho e valores congelados em mais de cinco anos.
Ou seja, o sistema mudou, jogou o intelectual para garantir sozinho sua sobrevivência profissional, o governo não ofereceu nenhuma ajuda – muito pelo contrário – e o livro, constituído por uma boa parcela de emoção, passou a ser tratado como produto manufaturado pautado por prazo e desenvolvimento robótico.
Será que algo vai mudar com as eleições?
Edição: Samy Dana e Octavio Augusto de Barros.
Sobre o editor
Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.
Sobre o Blog
O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.