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Literatura, política e resistência

GVcult

15/04/2014 09h00

Por Luís Gustavo Velani*.

Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso
(E, sem dúvida, sobretudo o verso)
É o que pode lançar mundos no mundo.

Caetano Veloso, Livros (1997)

As eleições presidenciais se aproximam e a ressaca dos protestos de Junho de 2013 permanece. O tema "Política" invade as discussões e se insere em todas as esferas culturais e sociais, inclusive na literatura. O Brasil passa por uma enxurrada de conteúdo e arte que parecem não seguir um padrão visível ou reconhecível mas que ajuda a preservar o sentimento de mudança e de poder dentre a população.

Mas eventos assim não são novidade; já nas décadas de 30 e 40 Vargas previa o poder da arte como força de revolta – mandou queimar livros de Jorge Amado em praça pública e prendeu escritores, como Graciliano Ramos, sob condições degradantes. A política e a arte sempre andaram de mãos dadas e é por isso que, além das maletas cheias de dólares, ternos e gravatas, discursos demagogos à plateias alienadas, existe uma relação bem profunda (e muitas vezes esquecida) entre Graciliano Ramos e o Congresso Nacional.

Ao longo da História, vários literatos foram perseguidos por conta de seus escritos. O caso mais recente a ser investigado é o do poeta chileno Pablo Neruda, que teve o corpo exumado no ano passado. Suspeita-se que Neruda, conhecido comunista, tenha sido envenenado logo após o golpe do ditador Pinochet. No Brasil, além dos dezenas de artistas que foram exilados durante a ditadura implantada no Golpe de 64 (além, é claro, dos intelectuais que "desapareceram" ou que foram torturados), chama a atenção a perseguição a escritores basilares em nossa cultura.

Antes da fogueira que ardeu queimando quase dois mil livros do escritor Jorge Amado, na Salvador de 1937, o escritor baiano já fora inclusive preso pela polícia política de Getúlio Vargas. Seus romances eram considerados "proletários", porque expunham a luta de classes, a exploração capitalista, nos meandros dos detalhes da cultura regional aos quais normalmente associamos seu nome.

Graciliano Ramos, vítima dessa mesma perseguição, escreveria o célebre "Memórias do Cárcere" (publicado postumamente), narrando justamente o período em que esteve preso. Em uma obra extensa e detalhada, o autor nos conta como conseguiu resistir às condições desumanas a que foi submetido, e realiza uma "releitura" de suas experiências, exaltando os traços de solidariedade, amizade, e, em síntese, de humanidade, que resistiram a toda a dor e injustiça.

Fazendo um giro rápido pelo mundo e pelo tempo, temos diversos literatos que conceberam obras de implicações políticas extremamente relevantes. Voltaire, com sua incansável produção literária e ativa atuação política que mudaram os rumos da Europa no século XVIII.  Zóla, com seu J'accuse e sua participação na liberalização política francesa no século XIX. Kafka, o tcheco que escreveu geniais análises literárias das estruturas de poder e instituições criadas pela sociedade, como em "O Processo", articulando sua produção com seus posicionamentos anarquistas. Outro tcheco, Milan Kundera, que encantou o mundo com as ideias de "A Insustentável Leveza do Ser" (1984), também denuncia em sua obra os absurdos da perseguição política aos intelectuais, e suas nefastas consequências para o legado cultural de um povo. Sartre, que recusou o Prêmio Nobel e teve uma participação decisiva na esquerda francesa do século XX. O alemão W. G. Sebald, que em livros como Austerlitz (2001) coloca de forma brilhante os acontecimentos políticos quase como personagens de seu romance. O sul-africano J. M. Coetzee, que em obras como "Vida e Época de Michal K." (1983), contrapõe de forma genial as figuras de autoridade e o valor da vida humana. A lista vai longe, muito longe. Mas talvez uma das mais contemporaneamente relevantes produções seja a do inglês George Orwell, que em trabalhos como "Revolução dos Bichos" (1945) e "1984" (1948) denunciou o totalitarismo e o sacrifício de direitos individuais e da privacidade. Em tempos de NSA e Assange, o trabalho de Orwell ecoa, profético.

A Literatura abre uma janela em nossas visões, por vezes preconceituosas, em relação à política e nos revela características menos evidentes deste termo tão desgastado.  Um segundo olhar sobre essa arte da articulação de interesses mostra camadas semânticas com profundas implicações filosóficas. A política, sob as lentes literárias, revela-se mais um dos aspectos da experiência humana. A criação literária é, não raro, uma forma de resistência à opressão e à violência dos detentores do poder (como negar o caráter político do ato de escrever?). Como diz a música de Caetano, esse "lançar mundos no mundo", essa ferramenta máxima de criação, permite ao homem transcender os limites mesquinhos das instituições, das disputas cotidianas, e pensar outros mundos possíveis, outras realidades. Mais humanas, mais livres.

Se, como diria Frederic Jameson (crítico literário e teórico político norte-americano), o consumo é a "lógica cultural do capitalismo tardio", a literatura é ainda um front de resistência a essa fúria avassaladora do capital, que insiste em invadir a subjetividade humana e reduzir os indivíduos a meras máquinas de consumir. Esse front, outrora a opressão política que assassina, tortura e prende, agora está muito mais no contexto da indústria cultural e da censura econômica. Em uma época em que livros são consumidos como meros objetos de entretenimento, de onde espera-se que partam narrativas leves e, em geral, vazias, a literatura deve nadar contra a correnteza, dar vazão à criação originalmente humana. Afinal, como diria Marcuse, "a reprodução espontânea, pelo indivíduo, de necessidades superimpostas não estabelece autonomia; apenas testemunha a eficácia dos controles." Libertar as mentes desses "controles" é – ainda – um dos grandes êxitos e possibilidades da Literatura.

Atrás dessa "política" dos telejornais, existe o enorme processo de articulação de interesses, de mobilização de recursos, através das quais materializam-se os princípios, crenças e aspirações humanas. Apesar dos inúmeros problemas sistêmicos das instituições políticas, que no Brasil atingem o dramático nível de uma crise de representatividade, a essência da atividade política, como a literatura não nos deixa esquecer, é o que nos distancia da barbárie e nos possibilita pensar, de forma civilizada, um mundo melhor: mais Caetano, menos Pinochet.

*Luís Gustavo Velani é integrante do Círculo de Leitura GVcult.

Edição: Samy Dana e Octavio Augusto de Barros.

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Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.

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