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GV CULT - Criatividade e Cultura

Historiografia das cidades medievais e modernas

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30/10/2018 06h34

Por    Bernardo Buarque de Hollanda

"…uma grande cidade provincial como Lyon, onde, sob o controle dos "Villeroi", governadores herdeiros daquela cidade, em uma cidade sem Parlamento, as elites – sublinha Y. Lignereux – não tem um comportamento específico."

Desde a Idade Média, há uma ligação direta entre a cidade, a organização da sociedade e a hierarquia das comunidades de ofício, tanto do ponto de vista jurídico e simbólico quanto do ponto de vista econômico. A influência das comunidades de trabalhadores está longe de se confinar nos limites da cidade, mas as profissões qualificadas, as artes mecânicas que conferem alguma 'nobreza' ao artesão se concentram, primeiro, na cidade. Em uma cidade organizada em corporações e hierarquizadas por privilégios, as comunidades de trabalho têm um papel não negligenciável na definição das identidades urbanas.

O lugar mais prestigioso entre elas no governo de certas cidades, sua contribuição nas cerimônias e nas procissões, em seus faustos de patriotismo citadino, ao menos até o fim do século XVII, sublinha a relação que existe entre elas e a cidade. Longe de ser moribundas no tempo das Luzes, quando se levantam os fermentos da crítica liberal, as comunidades fazem prova de capacidade de adaptação que testemunha sua importância econômica, como demonstra no caso de Turim a historiadora italiana Simona Cerutti (1990). Tais comunidades provam ainda como elas se encontram no centro dos conflitos de poder e de prestígio entre grupos citadinos dirigentes.

Aliás, as cidades que se beneficiam globalmente de um crescimento demográfico maior do que aquele do resto da população do reinado entre os séculos XVII e XVIII, constituem um mercado de trabalho em expansão, rico em trabalhos não-qualificados, situados fora do quadro corporativo. Esta população assalariada e operária, composta de migrantes, mantém ainda algum nível de relação com as vilas de origem. Ela ilustra a mobilidade da sociedade urbana que contradiz o modelo de relativo fechamento e de imobilidade social defendido pelas elites urbanas. Mas esta massa instável de mercadores ambulantes, de toda sorte de revendedores e de empregados domésticos, apesar do fascínio exercido e da norma constituída pelo "idioma corporativo", que parece se diluir pois ele não cimenta mais as antigas identidades citadinas, torna-se um elemento obrigatório de evocação na grande cidade.

A apreensão do mundo do trabalho, seja ele desorganizado, deve muito à chave oferecida pelas comunidades de trabalho. Mais além, é progressivamente a imagem do monstro citadino, associado aos trabalhadores braçais e dos pregoeiros que se impõe através dos lugares comuns das narrativas de viagem ou das descrições dos moralistas do século das Luzes. Que se trate então de comunidades de trabalhadores ou de pequenos mercadores de rua e de portos, a cidade se perfila como pano de fundo desta evocação, seja como ambiente jurídico e social seja como instância econômica seja como simples paisagem.

O século XVII constitui uma etapa importante na história social da Europa ocidental. Para as cidades trata-se de um período de transição. De um lado, um crescimento lento, mas regular, nas cidades francesas; de outro lado, a estagnação das cidades espanholas e o começo da grande industrialização inglesa. Essas evoluções, assim como a nova afirmação centralizadora dos Estados modernos, têm consequências sobre as funções das cidades, sobre suas instituições, sobre as relações que elas entretêm com as elites sociais, sobre a religião, a cultura e as artes, assim como, sobre a condição dos pobres e o estatuto da pobreza no meio urbano. A complexidade e a diversidade das sociedades urbanas da França, da Espanha e da Inglaterra são também reveladoras das premissas da modernidade que desponta no século seguinte.

Na Europa ocidental, desde o século XIII, mesmo se os campos e aqueles que aí vivem continuam a viver longe da sociedade, mesmo se eles continuam terrenos senhoriais, isto é, feudais, um processo fundamental de mudança se coloca em curso, do qual as cidades e seus habitantes são os atores principais. No século XVIII, não há dúvida: nós temos sociedades dominadas por cidades e cidadãos que, como forma de reação, influenciam, depois de 1760, o desenvolvimento de um sentimento de natureza do qual a expressão é cada vez mais frequente. Nesta evolução de conjunto, o século XVII é particularmente interessante para compreender a evolução das nossas sociedades.

O primeiro tema escolhido foi aquele da relação entre as elites e as cidades, particularmente complexo na medida em que as elites nas cidades e as elites sociais não estão forçosamente presentes, como o mostra exemplo da Inglaterra do mesmo século. Se os valores sociais dominantes permanecem nobiliárquicos, repousando largamente sobre a terra, da qual os nobres tiram sempre o essencial dos seus dividendos, ao menos uma parte desses nobres eram antes cidadãos – houve uma destacada passagem da nobreza no fim do século XVI e início do século XVII – muitos, notadamente na Espanha participaram da administração das cidades e, sobretudo, no curso do século XVII, a relação entre os nobres as cidades foram cada vez mais numerosas, como sublinham Poussou, Bourquin e Vergé-Franchesi (2007).

No século XVII, todo o mundo partilha o senso de honra, fazendo deste um valor primordial: é o que mostra D. Turrel a propósito da prática do "bonnet vert" para os "faillis", colocado em prática justamente neste momento. Isto se verifica da mesma maneira através do exemplo de uma grande cidade provincial como Lyon, onde, sob o controle dos "Villeroi", governadores herdeiros daquela cidade, em uma cidade sem Parlamento, as elites – sublinha Y. Lignereux – não tem um comportamento específico. Não há dúvida de que isto permite compreender por que na Inglaterra da segunda metade do século XVII se opera uma unificação cada vez maior entre os comportamentos das esferas médias e, em um degrau menor, inferiores – pois os "squires" ficaram no campo – da nobreza inglesa, a gentry, e das elites urbanas. Através do desenvolvimento de uma pseudo-gentry e da passagem a uma definição do gentleman, as elites urbanas se agregaram às elites sociais.

Esse foi o efeito de uma "modernidade" crescente da sociedade inglesa, muito menos evidente na França e na Espanha onde o poder do Estado era mais pesado. Em relação às cidades e ao Estado, os portos foram um objeto privilegiado, assim como aqueles do comércio e dos arsenais. Parecia, com efeito, que  o funcionamento das cidades era melhor conhecido que o dos portos, levando à escolha das relações entre a vida política urbana e os elos sociais, de uma parte, e aquelas das milícias burguesas, de outra.

Já para Laurent Bourquin a presença da nobreza nas cidades é, à primeira vista, bem discreta. Mas a segunda ordem da sociedade do Antigo Regime considera a cidade familiar e pode-se dizer que os nobres partilhavam uma cultura urbana, ocupando um papel de mediadores culturais entre os mundos da cidade e do campo. Este conhecimento nobiliárquico da cidade, de sua cultura e de sua sociedade, nos leva a compreender o processo que prepara a urbanização do século XVIII. Mas a nobreza é urbanizada ou as elites urbanas são enobrecidas? A resposta a essa pergunta se esboça em princípios do século XVII e se precisa na fusão de elites largamente favorecidas pelo Estado.

 

Referências bibliográficas

MILLIOT, Vincent. « La ville au miroir des métiers: représentations du monde du travail et imaginaires de la ville (XVIe et XVIIIe siècle) ». In : PETITFRÈRE, Claude (Org.). Images et imaginaires de la ville à l'époque moderne. Tours : Maison des Sciences de la Ville, 1998.

POUSSOU, Jean-Pierre (Org.). Les sociétés urbaines au XVIIe siècles : Angleterre, France, Espagne. Paris : Presses de l'Université Paris-Sorbonne, 2007.  

Edição      Enrique Shiguematu

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Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.