José Lins do Rego: antologia de Meus verdes anos (I)
Por Bernardo Buarque de Hollanda
Em conferência evocativa do centenário de nascimento do amigo José Lins do Rego (1901-1957), proferida na Academia Brasileira de Letras no ano de 2001, o poeta alagoano Lêdo Ivo disse:
"Há escritores que têm a exatidão de uma caixa de fósforos e a outros que têm a exatidão do oceano. José Lins do Rego tinha essa exatidão oceânica… Antes de morrer José Lins me disse que iria escrever o romance O menino e o carneiro. Quer dizer, havia nele a obsessão do menino. Essa obsessão está presente também em Gilberto Freyre, por isso não sei se, em José Lins, é uma coisa espontânea ou se veio de um contágio intelectual decorrente de Gilberto Freyre, que desde o começo estudou o menino brasileiro, estimulou no Brasil essa literatura da infância, da meninice, da vida familiar".
Essa conferência fez-me volver à leitura de Meus verdes anos (1956). Destaco uma sequência das passagens que me marcaram por ocasião da leitura:
– Sobre a natureza: "O rio Paraíba corria bem próximo ao cercado. Chamavam-no 'o rio'. E era tudo. (…) Contava-se o tempo pela era das cheias. (…) O rio para mim seria um ponto de contato com o mundo". (p. 36 e 37).
– Sobre o mundo fora do engenho: "Foi por intermédio dele (Manuel Chapéu de Couro) que vim a saber que havia propriedades distantes que não eram do meu avô. E que havia homens que mandavam mais do que eles". (p. 42).
– Sobre a vida na casa-grande: "À hora da ceia a velha Janoca já estava recolhida. E todos nós nos púnhamos à mesa para a última comida. O chá era servido com beiju de goma, inhame, pamonhas e requeijão feito pelo velho Amâncio" (p. 45).
– Sobre o cotidiano: "Sempre de manhã a minha tia Maria me acordava para tomar leite ao pé da vaca. Nas manhãs de sol o curral dos animais de manjedoura se enchia de trabalho" (p. 47).
– Sobre o avô: "Olhava o meu avô como se fosse ele o engenho. A grandeza da terra era a sua grandeza. Fixara-se em mim a certeza de que o mundo inteiro estava ali dentro. Não podia haver nada que não fosse do meu avô. Lá ia o gado para o pastoreador, e era dele; lá saíam os carros-de-boi a gemer pela estrada ao peso das sacas de lã ou dos sacos de açúcar, e tudo era dele; lá estavam as negras da cozinha, os moleques da estrebaria, os trabalhadores do eito, e tudo era dele. O sol nascia, as águas do céu se derramavam na terra, o rio corria, e tudo era dele. Sim, tudo era do meu avô, o velho Bubu, de corpo alto, de barbas, de olhos miúdos, de cacete na mão. O seu grito estrondava até os confins, os cabras do eito lhe tiravam o chapéu, o dr. José Maria mandava buscar lenha para a sua cozinha no Corredor, e a água boa e doce nas suas vertentes. Tudo era do meu avô Bubu, o 'Velho' da boca dos trabalhadores, o Cazuza da velha Janoca, o papai da Tia Maria, o meu pai da Tia Iaiá. A minha impressão firme era de que nada havia além do Corredor. Chegavam de longe os portadores de outros engenhos. Ouvia apitar o trem na linha de ferro. Apesar de tudo, só havia de concreto mesmo o Engenho Corredor." (p. 56).
– Sobre a cidade natal: "Já via o Pilar como outra entidade que não o engenho. Lá estava o sobrado do Comendador todo rodeado de rótulas e vidro de cor. A igreja, o padre Severino, a noite de festa. A Câmara Municipal onde o meu avô me levava para ver o júri. Havia mais alguma coisa que o Corredor." (p. 69).
– Sobre o amigo: "Comigo ficava o moleque Ricardo. Ricardo podia levar sol e chuva e nada sucederia, tomava banho de rio, montava a cavalo, tinha pontaria no bodoque e sabia assobiar como os concris, comia fruta verde sem susto. Admirava o moleque Ricardo e o colocava em plano superior aos outros. Podíamos ter seis anos de idade." (p.86)
– Sobre a prima: "Por que se foi embora a prima? Queria descobrir os caminhos do mundo e não sabia. Os trens cortavam o silêncio que dobravam de tom. Havia maquinistas que sabiam apitar com dolência. A imagem da prima se misturava aos rumores do monstro de ferro em cima do pontilhão. Montada em trem partira para muito longe." (p.117)
– Sobre os parentes: "Firmina era filha natural de meu avô. E tinha tudo dele. Alta e forte, não era de muito falar. Na hora precisa, contava-se com ela para tudo. (…) Era Firmina quem costurava para os moleques e os homens do engenho. Fazia as calças de meu avô de brim fluminense e as camisas de algodãozinho dos trabalhadores. Ria-se com todo o corpo e arrotava alto como se soltasse estampidos pela boca. A Tia Maria considerava-a irmã. A velha Janoca não era prevenida com ela, dando-lhe tratamento respeitoso. Também Firmina não era de ouvir calada. Gritava, e se viessem com luxos arrumava a as malas para ir embora. Aí não a deixavam sair. O meu avô, que não falava diretamente com as filhas, não se continha: 'Firmina, deixa de besteira'. E Firmina ficava temida e amada." (p. 118).
– Sobre o poder local: "A política para o meu avô não tinha importância. Votava todo o tempo nos conservadores, e isto lhe bastava. O Pilar era seu. As suas terras cercavam a vila por todos os lados, e ele nunca procurou mandar, como fizera Quinca Napoleão. (…) Nunca escondeu um criminoso em suas propriedades. Fossem para o júri como o assassino do seu irmão. Mas não era homem para quem levantassem a voz em desrespeito. (…) Nunca lera um livro em toda a sua vida. Mas era como se tivesse um código na cabeça. Escrevia cartas numa letra de capricho toda cheia de abreviaturas. Tinha amigos letrados." (p. 124).
– Sobre o mobiliário: "De luxo ali só mesmo o vinho que chegava em quintos da Paraíba, o vermelho vinho da França. O meu avô não amava o luxo. A sua cama era de sola, e tudo o que se fazia no engenho era para durar: casa de alicerces profundos, cumeeira de madeira de lei, canoas sem pintura". (p. 126)
– Sobre a comida: "A mesa do engenho era farta. Nunca nos faltou a melhor manteiga da Dinamarca e os queijos do reino, da Holanda. Tudo à grande como ele desejava. Tinha carro de cavalo e mandara instalar banho de torneira. Saía para as suas viagens à Capital, onde os seus negócios consistiam em receber os seus dinheiros edeixá-los no banco. A Tia Maria preparava a sua bolsa de couro. Metia ele o seu grande chapéu-do-chile, paletó negro de alpaca, as calças de listra, as botinas de elástico e, montado no seu Gouveia e de tabica na mão, botava-se para a estação do Pilar." (p. 127)
– Sobre a justiça local: "O seu primo Quinca do Engenho Novo abriu luta com ele por causa do Itapuá, e perdeu na justiça, porque os juízes sabiam que decidir pelo coronel José Lins era decidir pela boa justiça." (p. 128).
– Sobre as ferrovias: "O trem era tudo para o engenho. Era o relógio marcando os horários com exatidão, a levar as sacas de lã de meu avô para a Capital, trazendo latas de querosene, barricas de bacalhau para a Venda." (p. 135).
– Sobre a paixão: "Eugênia! Que saudades me ficaram daqueles instantes de alumbramento! Fogo de carne que ainda hoje queima como brasa". (p. 160)
– Sobre o engenho: "Aqueles meses de ausência e deram a oportunidade de avaliar o que era o Corredor. Ali gritava o meu avô e a Tia Naninha sabia fazer o que era necessário." (p. 174)
– Sobre a capital paraibana: "a Paraíba era uma cidade de bondes de burro e de carroças". (p.258)
– Sobre o enamoramento: "Chegara para a casa de Sinhô Marinho uma menina chamada Pérola. Tinha os cabelos negros e o rosto moreno como de cera. Viera do engenho Maraú, sobrinha da segunda mulher de Sinhô. Enamorei-me de Pérola. Talvez fosse maior do que eu. Também era sozinha como eu e órfã. Pérola! Sei que ela encheu os meus dias que a tristeza devorava. (p. 305-306).
– Sobre o alumbramento: "Foi nesta tarde, quase de noite, que me apareceu Pérola como um novo deslumbramento. Estava ela no portão do sobrado de Sinhô e me chamou: – Dedé vem cá. Olhei para os seus olhos que me queimavam. Arrancou-me para o escuro da escada e só sei que um fogo escuro abrasou as minhas partes.". (p. 310).
Edição Enrique Shiguematu
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