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GV CULT - Criatividade e Cultura

Os anos de formação de José Lins do Rego (I)

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27/06/2017 15h42

Por    Bernardo Buarque de Hollanda

Cidade de Pilar, PB.

Aos onze anos de idade, o engenho natal, situado na cidade de Pilar (PB), ficará ainda mais distante para José Lins do Rego (1901-1957), não apenas do ponto de vista sentimental. Depois de cursar o primário no instituto de Itabaiana, o menino foi enviado à capital paraibana, a fim de ingressar em um outro internato, onde dará prosseguimento à sua formação escolar.

Em 1912, a capital do Estado ainda não se chamava João Pessoa, designação cunhada somente após o incidente fatal de 1930. Àquela altura, tinha por nome simplesmente Parahyba, que em tupi significa "rio ruim". José Lins tem a lembrança da capital como uma área ainda semi-rural, com carroças e bondes puxados a burro. A década de 1910, contudo, assiste a um relativo surto de desenvolvimento. Era o início de um ciclo de modernização, semelhante ao modelo de transformação urbana por que acabavam de passar as cidades do Rio de Janeiro, de São Paulo e de Recife. As avenidas do centro da cidade eram iluminadas, as suas ruas mais importantes eram alargadas e pavimentadas, os seus meios de transporte, progressivamente mecanizados.

De certa maneira, o internato na Paraíba foi uma continuação do ensino que recebera no instituto de Itabaiana. Ambas as instituições tinham em comum uma orientação com princípios religiosos. O Diocesano Pio X fora fundado e dirigido por Irmãos Maristas, ordem católica que chegara ao Brasil em 1897, na condição de adeptos dos ensinamentos do sacerdote francês São Marcelino de Champagnat (1789-1840).

Inspirados neste seguidor de Maria, a "Boa Mãe", fundaram o primeiro instituto dos Irmãos Maristas das escolas já no ano de 1817 e disseminaram desde então sua pedagogia e seus estabelecimentos escolares por todo o país. Seria o caso de lembrar o estado da Bahia, onde havia o Ginásio Nossa Senhora da Vitória, conhecido como "o colégio dos maristas". Nele estudou o crítico literário Afrânio Coutinho, que relata suas recordações da escola nos anos 20:

"Os Irmãos Maristas, gente recrutada sobretudo na vida rural francesa, eram excelentes agricultores, constituindo uma corporação verdadeiramente democrática, impressionante para meninos da Bahia senhorial da época. Ali ingressavam pretos, judeus, protestantes, sertanejos bravios e meninos delicados da cidade. Os Irmãos nos tratavam paternalmente, sem imposições religiosas naqueles bons tempos em que o colégio particular não tinha inspetor de ensino, nem qualquer contato com autoridades do Governo. Não se falava em subvenções nem se pretendia fundos públicos de educação para a Escola particular."

 

O escritor mineiro Mário Palmério (1916-1996), autor de Vila dos confins e Chapadão do bugre, frequentou o Colégio Diocesano da cidade de Uberaba, enquanto o poeta e médico alagoano Jorge de Lima (1893-1953), de quem José Lins se tornará amigo anos mais tarde, estudou no colégio dos Irmãos Maristas da capital alagoana, Maceió. Talvez por isto, tanto Jorge quanto José Lins tenham tido uma sólida base de ensino religioso, que se manifestará, com maior ou menor grau, em cada uma das futuras obras literárias. Se as primeiras noções de catecismo a José Lins do Rego haviam sido dadas no Instituto Nossa Senhora do Carmo, a educação cristã vai ganhar então ainda mais solidez na sua formação após sua entrada no Diocesano Pio X.

Em recordação de mocidade, diz:

 

"Quero referir-me à época proveitosa que passei sob a tutela psicológica do colégio 'Pio X', ali onde se sabe render o culto divino a um Deus justo e poderoso e idolatrar, com dedicação, as tradições imaculadas de nosso povo."

 

José Lins frisou, em seu livro de memórias, as dificuldades de aprendizagem. Mas, pouco a pouco, é possível dizer que a vivência dolorosa se transformou em prazer. Este foi associado às descobertas proporcionadas pela leitura. Além das aulas de Religião, tinha as matérias de Aritmética, História e Gramática, no internato de Itabiana. A Geografia foi uma das disciplinas que mais despertou seu interesse. Com ela, conforme confessava ficcionalmente em Doidinho, "o mundo crescia para mim".

Já na mesma crônica acima citada, lembra:

 

"No vasto salão do velho e bem ordenado 'Pio X', sob a presidência de Aprígio Fonseca, bizarra figura de prefeito enérgico, eu na minha desmantelada banca de estudos com os olhos pregados nas páginas de uma Geografia, divagava imaginativamente pelas cidades formosas da Itália. Lembrava-me de Veneza, a ex-sacerdotisa dos mares, que tem em cada gôndola uma poetisa inspirada e em cada canal um poema. Ia depois nessa viagem subjetiva admirar Florença, núcleo germinal da Renascença, então meu espírito costumava sorrir ante a bela pátria de Dante."

 

O conhecimento das ordens de grandeza e das dimensões do mundo era obtido não somente através das aulas, mas, sobretudo, por meio de uma das novidades técnicas oferecidas pela vida moderna que chegavam às cidades, depois de inventada no final do século XIX: o cinematógrafo. Na época do colégio, como recorda, foi instalada em Itabaiana uma sala que exibia filmes da Pathé, empresa francesa fundada em 1896.O cinema, diga-se de passagem, virá a ser uma das predileções de José Lins do Rego, quando já adulto, residente no Rio de Janeiro.

Ainda na voz de seu alter ego, o estudante Carlos de Melo, rememora o papel pedagógico da sétima-arte no Brasil do início do século XX:

 

"A verdade, porém, era que o cinema nos educava, mostrava-nos cidades da Europa, terras coloridas da Itália. Lá estava Florença, a terra do Pequeno Escrevente Florentino. O Arco do Triunfo de Napoleão em Paris. Roma, com igrejas grandes. Gênova, donde Marcos saíra para a sua viagem".

 

 

Pouco a pouco, assim, a dificuldade crônica de aprender começou a se converter no gosto de ler. Em princípio, a literatura foi uma maneira de compensar o isolamento e a sensação de abandono vivido na escola. Paulatinamente, ela passa a se transformar em um hábito prazeroso, capaz de alargar os horizontes de sua "pobre imaginação de penitenciário".

Edição      Enrique Shiguematu

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Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.