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GV CULT - Criatividade e Cultura

José Lins do Rego, homem das letras e dos desportos (I)

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30/05/2017 06h57

Por    Bernardo Buarque de Hollanda

"José Lins do Rego foi assim tornando-se, pouco a pouco, um homem dos desportos."

A trajetória de José Lins do Rego contém uma faceta menos conhecida. Ela compreende o homem de letras que se volta à política dos desportos, à crônica – sendo esta herdeira do folhetim francês – e em particular à crônica esportiva. Na coluna de hoje, e da próxima quinzena, vamos nos dedicar a apresentar não o romancista do ciclo açucareiro nordestino, mas o cronista urbano, cuja importância advém do fato de ser previamente um escritor reconhecido, vinculado a círculos importantes da literatura brasileira, que se volta à crônica sobre esportes em determinado momento de sua vida no Rio de Janeiro.

A carreira de José Lins do Rego na passagem do romance à crônica e, em seu caso particular, à crônica esportiva, revela-se exemplar nesse sentido. Ligado no início de sua carreira jornalística, durante a década de 1920 em Pernambuco e Alagoas, à polêmica literária e ao panfleto político, veio a aflorar em José Lins do Rego no início da década de 1930 a vocação literária de romancista.

Com uma obra serial e opulenta, os romances de José Lins do Rego compreendiam todo um painel histórico da região nordestina, todo um retrato psicológico de seus tipos sociais mais característicos e todo um quadro político, econômico e cultural. Ao longo dos anos de 1930, eles foram dando corpo ficcional à maior parte do "Ciclo da Cana de Açúcar" e do "Ciclo do Misticismo, do Cangaço e da Seca".

Além da recepção crítica abonadora de membros da Academia Brasileira de Letras e do acolhimento editorial de José Olympio, durante décadas editor de ponta no país, a publicação ininterrupta de seus romances fez extrapolar os limites provincianos do romancista paraibano e, ainda na década de 1930, transfere-se de maneira definitiva para o Rio de Janeiro.

É no Rio de Janeiro das décadas de 1940 e 1950 que a publicação das obras ficcionais do escritor paraibano torna-se menos intensa e mais intermitente, dando margem ao reaparecimento da figura de José Lins do Rego como cronista e possibilitando o surgimento de uma nova faceta de sua personalidade: a de cronista esportivo.

Se o autor já exercia a atividade de colunista nos principais jornais de Recife e de Maceió nas décadas de 1920 e 1930, esse ofício volta a se ampliar no Rio de Janeiro, onde chega a colaborar regularmente em três periódicos da cidade, dentre eles O Globo, O Jornal, Jornal dos Sports, além da revista O Cruzeiro e da crônica radiofônica diária.

Discorrendo sobre os mais diversos assuntos, como a poesia e a pintura, o cinema e a música, a história e a política, o cronista registrava também em sua tradicional coluna dos Diários Associados, "Conversa de lotação", suas impressões sobre o cotidiano do habitante da cidade, não deixando nunca de cultuar um estilo simples, franco e despojado, sem sofisticações gramaticais e sem artifícios de linguagem.

Frente ao homem de gabinete, típico do bacharelismo, a crônica de José Lins do Rego fazia emergir o homem de rua, tão cultuado pelo modernismo. E, em contraposição ao romance marcado pela atmosfera da introspecção psicológica e da decadência social, a sua crônica afirmava o envolvimento com a cidade, com a vida coletiva e com o tempo presente, em seus aspectos mais prosaicos, circunstanciais e comezinhos.

José Lins do Rego foi assim tornando-se, pouco a pouco, um homem dos desportos. Embora a sua atuação não tenha sido concebida de antemão, a inserção no universo esportivo e sua rede de sociabilidade na capital da República levaram-no à ocupação de cargos nas principais entidades representativas do futebol. À maneira de outro modernista, o poeta, editor e amigo Augusto Frederico Schmidt, que dirigiu o Botafogo, José Lins do Rego esteve à frente da direção do Clube de Regatas do Flamengo entre 1939 e 1944.

Quanto a este clube, mencione-se que Lins do Rego é inscrito como sócio contribuinte em 1939. Três anos mais tarde, torna-se secretário-geral do Flamengo e, em 1948, é sócio proprietário.

Já na Confederação Brasileira de Desportos, foi secretário-geral por várias vezes ao longo da década de 1940 e 1950, chegando à presidência interina da entidade durante breve intervalo de tempo. Foi ainda, nos estertores do Estado Novo, nomeado junto ao Conselho Nacional de Desportos entre 1944 e 1946, órgão atrelado ao Ministério da Educação e Cultura, presidido por Gustavo Capanema, que o encarregou, anos mais tarde, da chefia da viagem da seleção brasileira no Campeonato Sul-Americano de 1953, em Lima, no Peru. A sua nomeação deu-se por intermédio de Carlos Drummond de Andrade.

O Conselho Nacional de Desportos (CND) foi criado pelo Decreto nº 3.199, de 14 de abril de 1941, passando a vincular a organização de todas as atividades desportivas ao Estado. Órgão ligado ao Ministério da Educação e Saúde, era composto por cinco membros nomeados pelo presidente da República. Já a Confederação Brasileira de Desportos (CBD), entidade privada, foi criada em 1914, com apoio de Lauro Muller, então Ministro das Relações Exteriores do Brasil.

Esse último dado parece-nos crucial para a compreensão do elo de uma importante cadeia nos anos de 1930 e 1940: os intelectuais modernistas, a esfera política e os círculos culturais. O eixo desta relação passava pela figura do ministro Gustavo Capanema, à frente do MES (Ministério da Educação e Saúde) entre 1934 e 1945, que abria espaço no governo Vargas para a atuação de um Villa-Lobos na música, de um Portinari na pintura, de um Mário de Andrade no patrimônio artístico.

No caso que aqui mais nos interessa, pouco mencionado, franqueava-se espaço também à presença de José Lins do Rego na política dos esportes. As práticas e as instituições desportivas eram assim reconhecidas no âmbito da educação e da cultura, numa fase em que vários modernistas, passada a voga libertária, preocupavam-se com questões pedagógicas e com problemas relacionados à construção da cultura nacional.

Assim Villa-Lobos se integra, como músico erudito associado ao Estado Novo, ao projeto educativo de levar às escolas a matéria-prima sonora do Brasil, segundo o compositor, resultado da confluência de sua natureza, de sua arte e de seu povo. Os cantos orfeônicos destinados às crianças brasileiras reuniam as peças do cancioneiro popular e os repertórios do folclore infantil, em espaços públicos esportivos grandiosos, como o Estádio de São Januário. Faziam-se presentes milhares de vozes que cantavam em uníssono, num espetáculo de uma grandiloquência típica das paradas militares e dos rituais oficiais da sociedade de massas.

Villa-Lobos percebia a educação musical como um instrumento cívico de formação da infância e da juventude. A música apurava os sentidos, ao mesmo tempo em que desenvolvia os valores da nacionalidade e cumpria o seu papel de integração social, unindo, como queira Oswald de Andrade em seu manifesto poético Pau-Brasil, "a escola e a floresta", ou, nos termos referidos pela sua biógrafa Maria Eugênia Boaventura, "o salão e a selva".

Edição      Enrique Shiguematu

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Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.