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GV CULT - Criatividade e Cultura

"Desvio para o vermelho: Impregnação, Entorno, Desvio", Cildo Meireles

GVcult

15/06/2015 06h00

Por    Daniela Nogueira Mendes

      e  Fábio Bruno Araújo Queiroga

 

Cildo Meireles

Ambiente "Entorno", da obra "Desvio para o vermelho: Impregnação, Entorno, Desvio" (1967 – 1984) de Cildo Meireles. Créditos: inhotim.org.br

Ao visitar o Instituto Inhotim e vivenciar a experiência que o museu oferece, é fundamental lembrarmo-nos da importância da arte contemporânea principalmente dentro do papel do administrador público. Assim como coloca Anna Cauquelin, a arte contemporânea está dentro de um regime de comunicação, onde a linguagem ganha papel de destaque por estruturar não apenas os grupos humanos, mas também a apreensão das realidades exteriores, das visões de mundo, suas percepções e ordenações – fatores extremamente importantes para quem deve planejar e implementar ações para a sociedade. Neste sentido, a galeria de Cildo Meireles em Inhotim conta com diversas instalações que apontam para questões mais amplas, de natureza política e social.

A obra "Desvio para o Vermelho: Impregnação, Entorno, Desvio", do artista carioca Cildo Meireles, causa uma série de sensações e interpretações que se intercalam de acordo com a inserção do espectador nos três ambientes da instalação.

Logo no início, inserimo-nos no interior de uma casa que apresenta uma incrível peculiaridade. Todos os seus móveis e objetos são em tons de uma única cor: o vermelho. A organização da casa também chama atenção, tudo está posicionado e arrumado de forma impecável. Vale observar que esta residência parece ser de alguém que tem uma vida financeira mais abastada. Esse é o primeiro ambiente da instalação, o qual o autor nomeia de Impregnação.

O segundo ambiente, Entorno, é um corredor de chão preto, com um pequeno frasco  caído, de onde escorre um líquido vermelho. Seguindo a tinta que representa o líquido, chegamos ao terceiro ambiente, Desvio, onde é demasiadamente escuro e a única iluminação, ainda que fraca, está no fundo, em volta de uma pia com uma torneira que derrama algo constantemente. Ao nos aproximar, percebemos que a pia branca está completamente respingada por um líquido vermelho que, assim como o que cai da torneira, nos remete ao sangue.

No instante em que nos deparamos com esse ambiente escuro, diante de uma pia que "jorra sangue", as sensações que havíamos tido antes são alteradas e abre-se espaço para outras interpretações. A casa montada na obra pode ser interpretada como o lugar mais íntimo de cada pessoa, a intimidade individual. Os móveis e objetos da casa, agora, parecem que são vermelhos por estar impregnados pelo sangue que escorre da torneira. O local escuro, onde está a pia, pode ser interpretado como o ambiente externo ao lar, à intimidade, ou seja, a sociedade. O sangue que é derramado pela torneira pode representar a opressão, a violência e o sofrimento que se geram a partir da exclusão de alguns grupos dentro de um pacto social.

Desta forma, acreditamos que a narrativa da obra refere-se ao quanto estamos todos envolvidos nas mazelas da sociedade, ao quanto nossa intimidade está impregnada pelo produto que ela mesma e seus diversos setores criam; o sangue que dela escorre invade o mais íntimo de cada pessoa. É como se houvesse a intenção de lembrar que não existe a separação entre sujeito social e sujeito individual; o que acontece no meio social transborda para a intimidade e, assim, somos todos responsáveis pelo sangue derramado.

A obra de Cildo Meireles, dentro dessa interpretação, faz-nos refletir sobre um tema atual que conta com a aprovação da grande maioria da população brasileira: a redução da maioridade penal. O apoio da sociedade a essa medida, cerca de 87% – segundo Datafolha -, acontece no terceiro ambiente da instalação, no escuro, fora da intimidade de cada um. O projeto que está prestes a ser efetivado pelo Estado é baseado na visão utilitarista de Jeremy Benthan, onde as decisões para a vida em sociedade são tomadas com base em análise de custos e benefícios, e o indivíduo passa a ser visto apenas como um instrumento para a maximização da felicidade de um grupo, sem ter seus direitos naturais levados em conta. No entanto, como coloca Michael Sandel em objeção ao utilitarismo, não necessariamente a vontade da maioria é o melhor para o coletivo.

O primeiro ambiente da instalação de Cildo, a casa, deveria ser o local para reflexão individual e profunda sobre o perfil e contexto dos jovens que são alvo do sistema penitenciário; seria o despertar da consciência moral, a qual se refere Joaquim Nabuco quanto aos esforços de destruir a obra da escravidão, sobretudo nos aspectos social e político. Infelizmente, o ambiente serve apenas para um refúgio onde a pessoa se sente protegida de qualquer sangue que possa ser derramado, perpetuando o cruel legado do regime escravocrata.

Mais de 60% dos presidiários do Brasil são pardos ou pretos; 70% das vítimas de assassinatos no país são negros. Assim, percebemos que a democracia racial que Gilberto Freyre expõe se contradiz quando colocada frente a frente com a realidade. Lamentavelmente, as pessoas que apoiam a redução da maioridade penal não refletem sobre o contexto histórico em que os jovens estão inseridos; muitas acreditam que não têm responsabilidade ou ligação com a situação, sentem-se protegidas em suas intimidades. A mestiçagem exaltada por Freyre não foi, e continua não sendo, suficiente para combater o racismo e o estigma da raça negra na sociedade.

Essa questão da parte da instalação de Cildo vista como refúgio, abrigo da omissão ou da permissão, também pode nos levar a refletir sobre o parasitismo das elites brasileiras, como bem coloca Manoel Bomfim. Estas se agarram às injustiças e desgraças alheias para continuarem em suas situações de conforto. A mobilidade social acabaria com essa posição privilegiada, pois se a população evolui, o parasitismo fica comprometido. Será que o envolvimento dos jovens na criminalidade, por exemplo, não está relacionado à falta dos princípios de justiça defendidos por John Rawls, Ronald Dworkin e Amartya Sem?

Por fim, as ações desastrosas do Estado que geram sofrimento e dor (o sangue) para determinados grupos da população, com a participação – direta ou indireta – da sociedade, acabam resvalando para a intimidade de cada um, contrastando com a organização e o conforto da casa. A participação efetiva ou a omissão, sobretudo das camadas mais favorecidas, nas ações injustas da sociedade é o que gera o sangue constantemente derramado na obra de Cildo Meireles; e, mesmo contra a vontade individual, esse sangue impregna na intimidade de cada um, seja para lembrá-los da culpa ou da responsabilidade que todos têm.

Edição    Filipe Dal'Bó e Samy Dana

Daniela Mendes e Fábio Queiroga

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.