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GV CULT - Criatividade e Cultura

“ADEUS, GAROTO” – UM RÉQUIEM PARA EDUARDO RAVENNA

GvCult - Uol

03/11/2020 00h40


Eduardo Ravenna, ator (1970-2020) | Fonte: Rede Social Facebook

Por Hélio Rainho

"Um amigo me chamou pra cuidar da dor dele. Guardei a minha no bolso, e fui."  

Clarice Lispector

Dizem que os amigos são os anjos que alegram a nossa vida. Se eu tivesse alguma dúvida quanto a isso ser verdade, ninguém melhor do que você, EDUARDO, para me certificar!

Me fez rir a vida toda, em todos estes anos de amizade, caminhada, jornada, palco, ensaios, roteiros, bastidores, camarins, coxias, orações, púlpitos…tudo o que produzimos e vivenciamos juntos!

Mas hoje, infelizmente, você me fez chorar.

Muito.

Chorar horas, amargar profundo silêncio, angústia e reflexão – como acontece quando a gente perde aqueles que nos são tão preciosos.

Eduardo Ravenna foi um dos mais brilhantes atores que conheci. Um ator com um tempo de comédia espetacular, incrível facilidade para criar tipos caricatos e se transformar em outras pessoas. Fizemos inúmeros trabalhos juntos, mas ele me surpreendia muito mais no cotidiano do que nas cenas. Certa vez, quando viajávamos para uma imersão teatral na Região dos Lagos num fim de semana, encaramos uma jornada procurando por um endereço que nunca achávamos. A cada parada pra pedir informação a um estranho, Eduardo pronunciava-se da janela do carro que dirigia criando um personagem diferente. Era um fanho, um português, um gago, um cearense, um argentino. Seu filho amado Estevão, nessa época um menino com cerca de 10 anos, junto com a gente no carro, quase nem ria, enquanto eu gargalhava com as performances do Edu.

"Já estou acostumado, tio Helinho. Ele faz isso sempre que a gente sai!".

Eduardo Ravenna (esq) em cena do filme Mato sem Cachorro (1983), de André Pereira e Pedro Amorim | Foto: frame de tela do filme

Eduardo era um ser teatral. Iluminado. Um criativo.  A arte não era uma escolha: era seu traje natural, um dom rico e precioso que Deus lhe concedera como a poucos. Dividi a cena com ele em teatro, em igreja, em praça, em rua…e até em cemitério. "Garoto, olha só onde você me trouxe: nem Fernanda Montenegro fez teatro em cemitério…isso é culpa sua!"- dizia ele, no dia e depois, sempre que lembrávamos do fato. Tínhamos um jeito muito peculiar de tratarmos um ao outro desde um quadro que fizemos juntos em que os personagens se chamavam de "garoto". Como ele sempre trazia a magia dos palcos pra vida, manteve esse tratamento. Me ligava, me mandava mensagens ou me encontrava e já vinha dizendo: "Garoto, você sumiu! Garoto, você me dá um trabalho danado quando eu quero te achar…você não começa com isso, não, viu?". A gente se chamava de "garoto" como uma metáfora inconsciente da arte, do jogo da representação: garotos brincam – representar é to play. Se fossemos sempre "garotos", a arte e a vida nunca mais deixariam de se misturar uma na outra! E era isso que ele idealizava quando estabeleceu pra nossa amizade o tratamento de "garoto".

Eduardo Ravenna nos bastidores do filme 5 Vezes Favela – Agora Por Nós Mesmos (2009),
de Cacá Diegues | Foto: frame de tela do filme

Tudo em Eduardo era humor, poesia bufa, commedia dell'arte. Trocava de vozes com imensa facilidade, o que o levou a brilhar também nos ofícios de locutor e dublador, atuando em filmes bastante conhecidos como Banana Split, O Homen da Máscara de Ferro e Efeito Colateral. Tinha a insígnia do artista, o ímpeto da criação: o tempo todo aproveitava as oportunidades a seu redor pra se inspirar na construção de um novo personagem. Um ator-cidadão stanislavskiano, desses que conversavam com a gente e, cinco minutos depois, estavam repetindo dois ou três trejeitos da nossa forma de falar. Coisa de "garoto"!

Eduardo e o filho Estêvão, ainda menino, na peça Seis Personagens à Procura de Pirandello, na Escola de Teatro Leonardo Alves | Foto: Blog Eduardo Ravenna http://eduardoravenna.blogspot.com

Atores são seres estranhos, múltiplos de si, articuláveis, maleáveis, capazes de transcender a simplicidade da existência e se desdobrar em outras vidas, em outros seres, expandir a criação. Talvez por isso possa parecer tão estranho que um deles se desligue, se desconecte do cenário em que estamos e desapareça sob o apagar das luzes.

Eduardo Ravenna | Arte: Vicente Lima

É como se a dor da saudade pudesse ser apenas uma fantasia; a morte fosse apenas uma cena escrita em um roteiro…e, de alguma forma, o ator principal estivesse interpretando, e tripudiando desse mistério que é viver e morrer sob um holofote e muitos aplausos!

"Garoto, será que você está apenas representando?"

Desde os 15 anos de idade, o meu amigo Eduardo sonhou com a ribalta. Foram 35 anos dedicados à sua arte. Hoje ele nos deixa, mas não assim…tão gratuitamente. No bolso, como na frase de Clarice, carrego suas dores. Mas a sua verdade e a sua amizade terei guardadas, para sempre, dentro do meu coração!

Daqui do coração não sai, "garoto"!

Tenha certeza disso…

[Eduardo Ravenna nasceu em 15 de dezembro de 1970 e faleceu em 2 de novembro de 2020 após ficar por mais de um mês internado, sendo acometido de infecção generalizada em decorrência da covid-19]

Edição Final: Guilherme Mazzeo

 

 

 

 

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.