Baile de Máscaras – por Vítor Steinberg
Por Vítor Steinberg
Quando falamos sobre os existencialistas semana retrasada, encontramos o sujeito solitário, esteta e diletante, tomando um café expresso, lendo um livro, um tanto indiferente ao mundo. Paralelamente, os anos 60 foram trazendo o socialismo libertário, hippies, yippies, convenções, shows e reuniões por toda parte. De um lado, então, temos o revolucionário particular (o flâneur metropolitano) e do outro, o revolucionário coletivo, o adepto à Era de Aquário. A ambas as partes o motivo influenciador foi a contracultura. Um misto de vanguarda, desconstrução, busca por novos horizontes e reparos a grandes falácias históricas.
Uma delas foi a criação do guerrilla theater, o living theater e o teatro do absurdo. As transformações do mundo refletem de imediato a consecutivas mudanças no teatro. O teatro do absurdo por muitos é chamado de naturalista e realista, valendo que esse tipo de texto é totalmente carregado de sentido, não o contrário. É o mundo que acompanha os rumos da arte cênica. Não há arte mais intrusiva, subversiva, perigosa e voraz.
Devido ao novo normal uso das máscaras, torna-se fundamental entender um pouco melhor sobre esta arte. É comum ler em muitos livros que o teatro nasceu através de costumes de ritos pagãos, como sacrifícios a animais, casamentos e celebrações de datas estrelares. Quando conversei com Zé Celso sobre tal origem, ele me disse: "O rito vem do teatro, não é o teatro que vem do rito". Ou seja, para fabricar um rito, é preciso ensaio, figurino, maquiagem, cenografia, casa de produção e, acima de tudo, roteiro.
Nos meus cursos sobre história da arte, alunos me indagam o por quê de o teatro não estar na "lista" das sete artes. Ocorre que, academicamente, teatro é um gênero literário, está oculto em literatura. Mas a coisa não é tão simples. Um texto teatral é mais que uma sequencia de diálogos. É um roteiro, o fio de Ariadne no labirinto do Minotauro, em que uma equipe enorme de diretores de cena, maquinários, camareirxs, pim-bins e atores seguem duramente. Para cumprir o conceito do espetáculo no tempo, para efetivamente realizar o rito. Sem roteiro, o rito é apenas loucura. O teatro, então, é a "sabedoria na insânia". O roteiro é o grande fio ao qual a tripulação inteira é guiada. Não à toa, roteiro em espanhol é guión.
Desde o rito até ao teatro temos o conceito de tragédia. Etimologicamente, tragédia é tragos-oidos, o sacrifício a um bode. Mais especificamente, o canto do bode: tragos = bode e oidos = canto. Como cerimônia religiosa e pública, havia o sacrifício pagão, entoado em coral até a morte do animal (que é entregue aos Deuses) e o último suspiro de vida, seu último canto. Por quê, então, o sacrifício a animais justifica a palavra tragédia? Porque a tragédia é o destino sem volta. A fatalidade assertiva do destino.
Sabendo desses pormenores, qual é a diferença entre drama e tragédia? No drama, você tem escolha. Há caminhos e opções a percorrer e mudar seu destino. Você não está sujeito à sorte, pode escolher o seu destino e a espera para a personagem decidir é o charme sedutor do drama. Não à toa que o drama é o núcleo de uma novela: o novelo de tramas emaranhadas que geram uma tensão absoluta e que você espera, como leitor ou espectador, o destino ser resolvido pelas particularidades da personagem.
Na tragédia é diferente. Você está sujeito à sorte, que é maior que você. O destino é escolhido pelos Deuses para determinar o que acontecerá na sua vida. Você não pode fugir, você não tem escolha. O oráculo diz a Édipo que ele vai casar com a própria mãe e assassinar seu pai. Tentando fugir desse presságio terrível, Édipo acaba cumprindo exatamente o que o destino oracular lhe reservava. Sendo o rito uma origem do teatro, toda a psicologia igualmente se deteve diante do teatro para fundamentar os seus preceitos. Uma ciência que nasceu há não menos que 150 anos baseou-se toda na sabedoria teatral de cinco mil anos atrás. Pouquíssimos textos foram conservados e transcritos até hoje.
De 123 peças de Sófocles, só sobraram 7. Este número já bastou para o nascimento da psicanálise. A palavra Mania, por exemplo, termo do léxico psiquiátrico, é originalmente "possessão dos Deuses".
Então, que prazer tinha o grego ao assistir peças tão terríveis? Observando acontecimentos tão trágicos, a cidade ficaria mais saudável. Chamado de "instância da catarse", o público sai de uma peça trágica dizendo "eu vou ser melhor" e ainda "sou feliz, pois nada disso acontecerá comigo". Espetáculos de conteúdo terrível para ninguém achar que a própria vida é tão ruim. Assim como no rito, matar um animal em público para o choque do horror evitar a violência na cidade.
Ao valorizar essa vida trágica, o teatro mostra a fragilidade da nossa condição. A tragédia coloca o homem em seu limite.
Mas e a personagem? Não estranhe o artigo "a", pois na verdade personagem é substantivo feminino. Que história é essa de que uma pessoa se torna outra, um ator interpretar um papel, do mesmo modo a origem é no rito? Sim, pois através do vinho as pessoas passam a ter uma alteração de identidade. Aí está a base do teatro. De todos os teatros nascidos de ritos e ritos nascidos do teatro, foi o fato do grego saudar Dionísio e beber o vinho que nasceu, realmente, a ideia de mudar de personalidade e assim, criar personagens.
E de onde vem a própria palavra "personagem"? É aquilo que per-sona, a passagem do som (sonar) através do buraco na boca da máscara. É o tipo de voz que o grego imitava para sair no buraco da máscara. Os buracos dos olhos para emitir expressão e verossimilhança e o buraco na boca, para emitir o som: personare. Em todos os teatros gregos, atores cantam e dançam ao redor do altar, girando no círculo. Este altar honra Dionísio, é o Thimelé.
Nietzsche: "teatro é a embriaguez de Dionísio transformada numa disciplina do belo espetáculo".
Ator lá na Grécia Arcaica é Hypokritês, o hipócrita, o que finge ser o que não é, dissimula. Téspis, conhecido como o primeiro ator, pintou o rosto de branco e colocou uma máscara. Isso tinha um peso altamente religioso para o grego, só em Roma é que teatro passou a ser mero entretenimento. Gostavam de circo, gladiadores, corrida de carro. O teatro romano nunca prosperou.
O verdadeiro poder do teatro – em suas origens gregas e pagãs – é trazer à tona a grandeza do homem. Isto por meio dos seguintes aspectos: o enigma indecifrável de quem somos nós, o sofrimento que nos leva ao autoconhecimento, o homem tem alguma responsabilidade ou é joguete dos Deuses? O errar é a escola, conhece-te a ti mesmo.
Quando a cidade entra em decadência, o teatro também entra em decadência e perde vida. Não estou certo se ver uma peça no computador ou em cabines individualizadas de plástico valha a pena. Aí fui na maior empolgação ver o norueguês Kadaver (2020, Jarand Herdal) na Netflix, estimuladíssimo pela ideia de que o público usa máscara e o elenco conduz a cena como nas peças do Teatro da Vertigem. Até a metade do filme, somos sugados por esse conceito, e o diretor da peça é o maior mistério. Então desaba para um dramalhão de cunho social, pueril e sem sentido, superlotado de dor, lágrimas, sangue… a atriz não segura, o filme (que é curto, tem 1h15) não segura. Criei tanta expectativa com um "novo" cinema escandinavo! Precisamos ressignificar o teatro neste planeta mascarado com três camadas de TNT.
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