Hamlet – por Vítor Steinberg
Por Vítor Steinberg
Quem disse que ia ser fácil? No começo o espanto do novo normal e a aventura de encará-lo até que empolgava. Mas meses depois, você acaba sentindo as neuroses civilizatórias, o confinamento do corpo e da alma, a entediante sensação de infinitude das coisas, os preços aumentando, os sonhos encolhendo, as relações humanas psicóticas, bizarras, fracas.
O Instagram deprime, não precisa de documentário de denúncia da Netflix para explorar essa consciência. Você pode fazer psicoterapia todos os dias, apresentar amor-próprio elevadíssimo, mas num determinado momento… vence a ansiedade devoradora, não há manufatura mental que segure.
Temos gripe, às vezes pânico. Enfrentamos, pois temos motivação de alguma maneira. Podemos ter poderes incalculáveis, contudo temos momentos de falta total de todas as coisas. Momentos de dúvida de todas as coisas. Momentos de desespero espiritual. Difícil de trabalhar, de lidar. Sofremos de circunstâncias atenuantes. E os muito sensíveis, pessoas passionais como nunca antes.
Assim é Hamlet. Um príncipe em melancolia. Um jovem que tudo tem, mas nada pressente ter. O "Ser ou não ser, eis a questão", empunhando o crânio de uma caveira, não é brincadeira nem simbologia. Hoje sabemos bem mais o que isso representa. Chega um momento em que você tem que fechar sua escolha, porque forno aberto não faz pão. Ao escolher, você não irá se importar com mais ninguém, e vai esquecer os outros caminhos. Se eu quiser experimentar tudo, não vou ter nada. Vou me concentrar no que é meu, aí vou chegar em algum lugar. Não podemos ser a todo tempo senhor de nossas emoções.
Se você proteger o processo, o resultado vai sair sozinho.
O engraçado é que Hamlet me veio na cabeça não por conta das questões existenciais da pandemia e do modo como as pessoas piraram em 2020. Lembrei de Hamlet por conta desse debate do Caetano ter citado o alívio de ser liberaloide e mencionar o filósofo italiano Domenico Losurdo através da referência do ótimo professor pernambucano Jonas Manoel. O rapaz da minha idade, interessantíssimo e potente, é referido na Folha como stalinista.
Guia: ao citar um intelectual como stalinista, promove-se a ideia de que ele é um autoritário de extrema esquerda, portanto mesma moeda de um autoritário de extrema direita.
Política afora, o lance é que Stálin odiava Hamlet. O personagem tem muitas dúvidas. Hamlet é fraco, indeciso, corroído por dúvidas insolúveis. Não é um grã-fino in veritas.
Entendo que para alguns Hamlet é um chato. As suas roupas escuras eram justificadas por ele mesmo como um reflexo exterior de sua melancolia. Observando que existir é indiferente, ele pede para que fizessem a encenação da morte do pai. Lenda nórdica, é pré-Shakespeare, na pena do autor inglês só se fez o que fazia de melhor: palavreou a lenda em uma peça de teatro de cinco atos. Mas Shakespeare introduz de fato a personalidade de Hamlet. Para mim, quem é chata é a Ofélia: que mulher enlouquece daquele jeito?
Os filmes hollywoodianos trazem um Hamlet muito enérgico, cheio de ação, com direito até a Mel Gibson interpretar. Mas o personagem não é um herói de ação, ele é intelectual. É instruído da inação, introspecção, difícil para trazer em cena e ser sentido pelo público. É pianíssimo, nunca fortíssimo. Não está no clímax o tempo todo, varia o humor…
Um príncipe em melancolia que é assombrado pelos fantasmas do passado, todo tempo.
Um reino regido por um príncipe em melancolia é um reino de ódio e ingratidão.
Num mundo que nos assombra, Hamlet enquanto raciocina, tenta esmiuçar seu turbilhão de pensamentos, enlouquece.
Tão humano, tão atual.
Espiritualidade emancipatória. Sei ou não sei, acho que essa é a chave.
Instagram do autor @steinberg__
Edição Final: Guilherme Mazzeo.
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