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GV CULT - Criatividade e Cultura

Chadwick pra sempre!

GvCult - Uol

31/08/2020 10h18

Foto: Divulgação Filme Pantera Negra | Site Imdb

Por Hélio Rainho

Eu era jovem e tinha dois grandes amigos.

A minha banda favorita era o Depeche Mode, a do Álvaro era o U2…e a do Anderson era o Living Colour.

O meu cineasta preferido era Ridley Scott, o do Álvaro era Steven Spielberg…e o do Anderson era Spike Lee.

O meu ator de filmes de ação preferido era Schwarzenegger, o do Álvaro era Stallone…e o do Anderson era Denzel Washington.

O meu herói era o Homem-Aranha, o do Álvaro era o Batman…e o do Anderson era o Pantera Negra!

Eu precisei de alguns anos na vida pra entender porque o Anderson, por ser um amigo negro entre nós, se sentia representado naquelas figuras negras como ele, quando falávamos de arte, música ou entretenimento. Não era apenas por causa da cor, nem daquilo a que chamam de "raça", nem por uma escolha. Estava além da escolha racional ou ideológica. Era intuitivo. Identificação. Representatividade. Ele se via e se enxergava, assim como cada um de nós, naquilo que melhor traduzia o universo e o cotidiano que ele mesmo vivia e, naquelas escolhas, saltava diante de seus olhos.

O herói do Anderson era o Pantera Negra. T'Challa existia somente nas revistas em quadrinhos, nos dias de nossa infância. Seu grau de alcance estava restrito, porque era um herói secundário de uma publicação destinada a um público jovem/adulto, com temáticas complexas e publicações esporádicas. Não tinha desenho animado na televisão, nem fantasia pra carnaval, nem máscara, nem canequinha do Pantera Negra pros meninos conhecerem. Mas o Anderson, desde menino, conhecia e sabia quem era o Pantera Negra. Ele lia os quadrinhos ouvindo Living Colour, e assistia aos personagens ativistas dos filmes de um iniciante Spike Lee imaginando que aqueles eram os panteras negras da sua própria realidade.

O herói Pantera Negra | Reprodução de capa | Fonte: Pinterest

Mas foi em 2018 que essa realidade mudou. Quando um certo Chadwick Aaron Boseman aceitou o desafio de levar para as telas o mítico personagem dos quadrinhos, houve uma guinada radical em toda essa história.

A Marvel já tinha invadido as telas dos cinemas e o imaginário das crianças de todo o mundo desde a década de 90 com suas múltiplas releituras dos heróis dos quadrinhos. A temática da representatividade negra já estava presente em seus protocolos criativos quando heróis como Nick Fury (que sempre fora branco nos quadrinhos) e deuses como Heimdall (um personagem da mitologia nórdica, portanto caucasiano) foram repaginados nos filmes da Marvel como personagens negros. Brilhantemente interpretados, diga-se de passagem, por astros como Samuel L. Jackson (Fury) e Idris Elba (Heimdall). Anthony Mackie já brilhava como o Falcão Negro nas duas edições do Capitão América, Don Cheadle era coadjuvante de luxo como o Máquina de Combate ao lado do Homem de Ferro e Mike Colter atraía atenções na série sobre Luke Cage em uma provedora de streaming. Todos heróis negros do universo cinematográfico da Marvel.

Chadwick Boseman e o gesto "Wakanda Forever" | Site Imdb

Mas Chadwick foi Chadwick. E isso tem e não tem a ver com o status de sua morte, neste triste 28 de agosto de 2020. Não tem porque, mesmo antes dessa trágica fatalidade, sua aparição carismática e arrebatadora como T'Challa alavancou a primeira trama cinematográfica sobre um herói negro sem os estereótipos dos heróis negros de até então. E tem a ver com sua morte porque, através dela, pudemos saber que havia, de fato, um herói humano sob a roupa cenográfica de super-herói Marvel.

E quais eram os estereótipos comuns aos heróis negros? Os mesmos de sempre, restritos às narrativas que insistem em delegar aos negros a imagem escravizada, seviciada, primitivista, tribal ou mística que convém a uma narrativa racializada que jamais admitiria vultos negros soberanos, intelectuais, prósperos, filósofos, desenvolvidos além de esferas rotuladas pelo ocidente como rudimentares e pitorescas. As mesmas narrativas que só permitem enxergar escolas de samba como terreiros, enredos afro trazendo navios negreiros e xirês; Jean-Michel Basquiat como grafiteiro; a África como uma grande savana, terra do vírus ebola ou generalizada como território de fome etíope. Não que o primitivismo, as chagas históricas ou algum sistema de crença sejam inferiores a outras temáticas; evidente que não o são; mas no sentido em que são expressões historicamente manipuladas e distorcidas para subtrair quaisquer narrativas de equivalência e supremacia negra diante de uma hegemonia branca.

Mas o Pantera Negra, não! Com ele, e com aquele filme, era diferente. Nunca antes a estética e a filosofia do afrofuturismo puderam obter alcance tão globalizante para crianças e adultos do mundo inteiro. O mitológico reino de Wakanda representava uma África soberana, potência tecnológica imbuída de ideais filosóficos anti-belicistas em contraste com seu poderio armamentista – a mais poderosa nação desenhada para um futuro, capaz de salvar a humanidade, em status reverso da subserviência e inferioridade tanto tempo difundidas. A combinação poderosa de ancestralidade com tecnologia desestigmatiza o tribalismo redutivista das narrativas racistas. O empoderamento bélico de Wakanda é, por analogia, correlato ao engajamento social do Black Lives Matter em sua força e encorajamento contra o genocídio negro, tipificando o poder da resistência. Wakanda é a mais poderosa antítese da caricatura reducionista que as narrativas coloniais insistiram em construir sobre a África e os africanos. Seus poderosos guerreiros suntuosos de um reino próspero contrastam com os filmes de ficção científica que, até então, mostravam Jetsons & Luke Skywalkers brancos em um futuro profilático onde negros não existem: Wakanda aponta o futuro negro, a soberania negra, a resistência negra. Por isso Wakanda não é poeira no passado…ela é Wakanda pra sempre!

Wakanda: potência tecnológica e estética afrofuturista no filme Pantera Negra | Foto: Imdb

O escritor, teórico e cineasta britânico-ganense Kodwo Eshun, formado em Literatura Inglesa na University College e na Oxford University e em Romantismo e Modernismo na Universidade de Southampton, apresenta em seu texto Further Considerations on Afrofuturism um pouco dessa reação em cadeia que a filosofia afrofuturista desencadeia em narrativas como a do filme Pantera Negra:

"Se os cenários globais são descrições que se preocupam principalmente em tornar os futuros seguros para o mercado, então a primeira prioridade do Afrofuturismo é reconhecer que a África existe cada vez mais como objeto de projeções futuristas.  A realidade social africana é sobredeterminada por cenários globais intimidantes, projeções econômicas do fim do mundo, previsões meteorológicas, relatórios médicos sobre a AIDS e previsões de expectativa de vida, todos os quais preveem décadas de imersão. Essas descrições poderosas do futuro nos desmoralizam; mandam-nos enterrar a cabeça nas mãos, gemer de tristeza. […] Aqui, não somos seduzidos por rostos sorridentes olhando intensamente para uma tela;  em vez disso, somos ameaçados por futuros predatórios que insistem que os próximos anos serão hostis. […] O afrofuturismo estuda os apelos que artistas, músicos, críticos e escritores negros têm feito para o futuro, em momentos em que qualquer futuro se torna difícil para eles imaginarem. […] Ao criar complicações temporais e episódios anacrônicos que perturbam o tempo linear do progresso, esses futurismos ajustam a lógica temporal que condenava os negros à pré-história.  Cronopoliticamente falando, essas historicidades revisionistas podem ser entendidas como uma série de poderosos futuros concorrentes que se infiltram no presente em taxas diferentes."

Kodwo Eshun CR: The New Centennial Review Michigan State University Press, Volume 3, Number 2, 2003, pp. 287-302.

É isso. "Pantera Negra", o filme, constituiu um ato cronopolítico de revisão histórica do apagamento negro em sociedades futuras. Tudo isso numa difusão de discurso em escala mundial, com o alcance que a indústria cinematográfica norte-americana é capaz de obter.

Faltava, porém, não o corpo, mas a alma para revestir o personagem e envergar a sua força intrínseca. E ela estava em Chadwick Boseman. A alma negra do jovem que engajou-se na arte quando um colega foi baleado e morto, escrevendo a peça teatral Crossroads (1995) e iniciando uma carreira que o levaria a interpretar personagens e a reviver dores e glórias como as do jogador de beisebol negro Jackie Robinson em "42, a história de uma lenda"(2013), o genial cantor James Brown em "Get On Up: A História de James Brown"(2014), e Thurgood Marshall, primeiro juiz negro na Suprema Corte, em "Marshall: Igualdade e Justiça"(2017). Sempre imerso em trajetórias de ativismo, representatividade e engajamento. Chadwick conhecia a sua luta e a luta de todos os seus.

Chadwick brilhante como Robinson, James Brown e Marshall | Fonte: site Imdb

Chadwick era moldado pela vida e pela arte para ser entronizado como o monarca de Wakanda.

Hoje, devolvemos as lágrimas que Chadwick derramou pelos meninos em estado terminal que sonhavam viver ao menos até que o astro pudesse resplandecer nas telas como o herói negro que eles tanto admiravam. Hoje devolvemos as lágrimas que Chadwick provavelmente derramou sob o uniforme negro que envergou com pujança e determinação nos bastidores do filme que eclodiu nas telas do mundo, enquanto seu corpo físico padecia sob as agruras de uma doença fatal e consumidora, bem como de seu tratamento doloroso e angustiante. Ainda hoje, mais que qualquer outra coisa, devolvemos as lágrimas como tributo de um herói em carne e osso que se eternizou como porta-voz não de uma, mas de várias gerações, em diferentes idades, que agora possuem a referência que não tinham, o orgulho que lhes haviam roubado, a esperança que outrora ninguém jamais lhes havia ofertado.

Eu era jovem e tinha dois grandes amigos.

Ainda tenho Álvaro e Anderson comigo hoje.

Além deles, muitos outros.

E, de alguma forma, Chadwick, também sinto que tenho você.

Porque te vi sair das paginas dos gibis do Anderson para dar alma ao personagem.

Porque faz parte do imaginário eterno dos amantes da Marvel olhar para sua figura altiva, eterna e cheia de ternura, elegância rara e sorriso contagiante, olhando dentro de nossos olhos como quem parece nos lembrar que, "em nossa cultura, a morte não é o fim".

Não é mesmo! Você descansou, mas não se foi de nós.

Chadwick é T'Challa. T'Challa é Wakanda.

E, se Wakanda é "forever"…Chadwick será "forever", também!

Edição Final: Guilherme Mazzeo

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.