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GV CULT - Criatividade e Cultura

Trilogia Literatura e Isolamento Social

GvCult - Uol

11/08/2020 06h18

Gravura de Metssier D. sobre a obra de Xavier de Maistre, publicada na edição inglesa da obra pela Riberside Press em 1871

Por Hélio Rainho

 Tomo I –  Viagem ao redor do meu quarto – Xavier de Maistre (1794)

"E haverá, com efeito, algum ente tão infeliz, tão abandonado, que não tenha um reduto para onde possa retirar-se e esconder-se de todo mundo?"

Sim, eu sou (mais) um desses que já se enfastiou do termo pandemia. Substantivo mais chato, recorrente, esfiapado pelo uso excessivo em todas as rodas e rédeas de discussão. Chega!

Mas veio a reboque desse rebuceteio cármico de larga escala (prefiro chamar assim!) uma interessante ponderação a respeito de uma de suas consequências (ou melhor, da sua principal forma de prevenção) – a saber, o tal "isolamento social". Que também é termo gasto, mas prudentemente ainda necessita ser lembrado. Façamos uma reflexão sobre esse atual estado de isolamento em que muitos de nós ainda estamos: discuti-lo sob o ponto de vista de tempos distantes, situações dispares, em obras literárias dos séculos passados. Assim, estou inaugurando aqui uma trilogia de colunas sobre Literatura e Isolamento Social.

Este texto eu chamarei de Tomo I.

Largando um pouco de mão o que diriam os papas Comte e Durkheim, e enveredando mais pelas areias movediças de Sartre: a sociabilidade é um porre…e o inferno, realmente, são os outros! Mas não é de nenhum desses três que hoje, aqui, falaremos.
Hoje a nossa viagem vai ao distante século XVIII, mais especificamente ao ano de 1794…ali, já quase virando pro século XIX, quando um certo francês chamado Xavier de Maistre (1763-1854) – nobre, de alta patente militar, posteriormente diretor da biblioteca do Museu Real de São Petersburgo, para onde fora exilado com a revolução francesa por aderir à causa russa – publicou sua obra-prima, o inusitado livro Viagem ao Redor do Meu Quarto.

Xavier de Maistre | Fonte: Wikipedia

"Proibiram-me de percorrer uma cidade, um ponto; mas deixaram-me o universo inteiro: a imensidade e a eternidade estão às minhas ordens."

Sobre seu confinamento de 42 dias devido a um tempo de prisão na fortaleza de Piemonte, em Turim, por uma insubordinação militar, Xavier escreveu a inusitada odisseia do viajante dentro de seu próprio quarto, transformando as fronteiras de um mundo limítrofe em um descortinar de narrativas e digressões literárias. Para um literato cuja vivência pessoal fora marcada pela subjugação da mobilidade e do espaço, havia duas possibilidades de interpretação da vida dentro daquele aposento: ou Xavier se alimentaria de um profundo sentimento de restrição ou enveredaria por sua verve criativa para reconfigurar a situação em um espectro de expansão metafísica de todos os seus limites. Entre restringir-se ou estender-se, a literatura o salvou!

A obra é pontuada por um conflito que muito nos lembra o percalço do isolamento social de nossos dias atuais: Maistre se apresenta como um narrador-protagonista em vários sujeitos psíquicos, envoltos em diferentes motivações e anseios decorrentes das ambiguidades de suas duas naturezas – a almática e a "animal". Se a alma presa no quarto acomoda-se nos valores morais e na busca de suas metas e desígnios de vida, o corpo animal revela-se impulsivo e irrefreável. Há um capitulo, por exemplo, sobre uma experiencia de polução noturna (aquela ejaculação involuntária ocorrida por algum excitamento durante a noite de sono) que teria sido recolhido nas edições posteriores à primeira, a pedido do autor. Os capítulos são recortados como tomos, pressupondo temas e reflexões não necessariamente sequenciais – uma inovação literária que Xavier deveria à influência do celebrado autor francês Laurence Sterne, e que viria inspirar um certo Bruxo do Cosme Velho a construir as ponderações de seu herói póstumo Brás Cubas.

Xavier e seu criado Joanetti no aposento | Reprodução de gravura da rede social Pinterest

"Ao lado de minha poltrona, ao seguirmos para o norte, minha cama aparece. Ela é colocada no final do meu quarto e forma a perspectiva mais agradável.  Tem uma localização muito agradável, e os primeiros raios de sol brincam em minhas cortinas. Nos belos dias de verão, vejo-os rastejarem, à medida que o sol nasce, ao longo de toda a parede esbranquiçada. Os olmos em frente às minhas janelas os dividem em mil padrões enquanto dançam na minha cama e, refletindo sua cor rosa e branco, espalham um tom encantador ao redor. Ouço o gorjeio confuso das andorinhas que se apoderam do meu telhado e o gorjeio dos pássaros que povoam os olmos. Então, mil fantasias sorridentes enchem minha alma; e em todo o universo nenhum ser desfruta de um despertar tão delicioso, tão pacífico como o meu."

Desde a infância, Xavier de Maistre se dedicou à pintura, obtendo considerável reputação como pintor de retratos em miniatura e paisagens. É provável que as cenas descritivas do seu ambiente de claustro advenham dessa vocação para conceber imagens, cores e ambiências, construtos que também permeavam os ideais dos estetas de seu tempo. O rebuscamento no texto é visivelmente confeccionado com a subjetividade com que apresenta o universo que o rodeia – na verdade, o universo de um aposento parece-lhe rico e profundo ao ponto de inspirar uma requintada retórica como caminho (viagem literária) para descrevê-lo.

Há um dado na obra, dentre tantos outros que poderíamos destacar para as mais variadas e profícuas análises, que nos salta aos olhos quando falamos dessa aventura de Xavier, transfigurada/reconfigurada na odisseia do protagonista de seu romance. É que, não obstante o fato de o seu confinamento ser decorrente de um ato punitivo, portanto consequência de uma coerção, há um certo prazer evidente em sua jornada que certamente enriquece a leitura e surpreende o leitor, como se pode perceber em suas próprias palavras…

"(…) juro por tudo o que me é caro, que já tinha intenção de empreendê-la muito tempo antes do acontecimento que me fez perder a liberdade durante quarenta e dois dias. Esta reclusão forçada foi apenas a ocasião de me pôr a caminho mais cedo."

Revela-se aí, portanto, a condição peculiar e dual da obra: havia a coerção, havia o constrangimento, havia a violação de uma liberdade por uma punição que isolava o personagem (alter-ego do autor), sim; mas a soma dessas forças externas atuando sobre ele não o impediam do desfrute da situação. O deleite do autor está ali convertido não só na obra apresentada, mas também nas lições metafísicas, filosóficas e até irônicas que ele subtraiu desse estado de provável melancolia. Para Maistre, o isolamento social proporcionado pela quarentena em seu aposento não era impeditivo de um oportuno crescimento, que ele provocativamente compartilhava com o leitor…

"Você não pode deixar de ficar muito satisfeito consigo mesmo se, a longo prazo, conseguir fazer sua alma viajar sozinha. O prazer proporcionado por este poder irá contrabalançar amplamente qualquer inconveniente que possa surgir dele. Que prazer mais lisonjeiro há do que ser capaz de expandir assim a própria existência, de ocupar ao mesmo tempo a terra e o céu, dobrar, por assim dizer, o próprio ser?" 

A estranha viagem do viajante que não viaja; do homem que transubstancia os objetos decorativos e os limites métricos de seu quarto em um passeio da alma por fronteiras ilimitadas deve nos sugerir que a quarentena dos claustros do século XX aponta para um mal tão ou mais contagioso que o vírus que nos impede (pelo menos os não-incautos) de sairmos de casa. A intrincada e labiríntica Viagem ao Redor do Meu Quarto é um xeque-mate no jogo de espelhos daqueles que não conseguem fazer de sua própria existência uma obra de arte ou de prazer.

Golpe de Maistre!!!

 

P.S. Os excertos da obra usados neste texto são livre tradução deste colunista de A Journey Round My Room, tradução do francês para o inglês por Henry Attwell (Cambridge: Riverside Press, 1871), disponível em versão e-book do app Kindle. A não-referência das passagens faz parte de um convite à viagem pelo quarto do autor…

Edição Final: Guilherme Mazzeo

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.