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GV CULT - Criatividade e Cultura

Cancela essa água – por Vítor Steinberg

GvCult - Uol

07/08/2020 06h26

"O Grito" (1893), de Edvard Munch.

Por Vítor Steinberg

A lista dos melhores filmes seguirá mais à frente.

Urge um olhar aqui e acolá, antes. Como dizia Nelson Rodrigues, o óbvio ululante. A tarefa de um cineasta é inserir seu olhar no contexto do mundo. No momento, não podemos fazer filmes. David Lynch inaugurou sua marca de biquíni. Algo vai além disso tudo. Não podemos deixar de continuar a análise crítica – e procedente – dos nossos tempos.

São os paradoxos dos nossos tempos. E os paradoxos não são diretamente binários, são caóticos. Sou uma pessoa não-binária. Uns podem ter olhos bidimensionais, tridimensionais, ou visão polígona de aranha, que tem oito olhos. O mais interessante é ter olhos livres.

A teoria do caos, por mais que seja curiosa, é conspiração.

Sem conspiração, podemos medir, sistematizar, mecanizar a realidade. A ciência se envergonha em dizer não buscar a verdade, mas reduzir a incerteza. Buscamos a verdade, desde os românticos, desde os pré-socráticos, não há vergonha nisso, ainda que não se presuma que ciência pode ser dogmática e transdisciplinar.

São meta-paradigmas que nos tranformam em verdadeiros replicantes de Blade Runner.

Num dos monólogos mais bonitos do cinema, o andróide Roy, à beira de desligar, diz: "Todos esses momentos se perderão no tempo como lágrimas na chuva".

Buscamos sim a verdade, mas isso não representa que devemos destruir a natureza, no sentido de dominá-la como propunha Francis Bacon. Ao artista, essa busca não é dogmática também, então defendo que arte e ciência são a mesma coisa. Reduzem a incerteza.

E a verdade não será nada de verdade exagerada, conhecida como hipérbole. Verdade simples, contida, elegante.

Anúncio do governo numa cidade na Noruega: "Respeite a natureza, mas isso não significa que ela vai respeitá-lo de volta".

Ah, Francis Bacon, o conselheiro do rei Jaime I, fundador da ciência moderna, não me refiro ao pintor modernista! Confundir as coisas hoje está tão em voga quanto botão de cancelamento. O botão vermelho da espaço-nave, em que o cartum clichê teima apertar. Lembra do Roger Rabbit quando o detetive bate na porta tam tam tam tam tam… e o coelho não dá conta e chuta a porta com tudo: Tam Taaaaaam!

O siricutico coletivo contagia e altera tudo. Reunião em família nunca foi tão esquisita, você se fiscaliza para não falar sobre política com seu pai, com medo de estragar o seu vínculo familiar e sua própria bússola de amor incondicional, meta-paradigmática.

Uma executiva bem sucedida pede água ao garçom. Sem gelo e quase quente, ela testa o paladar e levanta o braço:

Você me cancela essa água?

O garçom reclama. Ela, já "almoçada", sai do restaurante sem pagar a conta.

Há dois mil anos, Salomé, uma garota de 14 anos, sem entender o prisioneiro João Batista, pede ao seu padastro, o rei Herodes, que os guardas "cancelem" o santo, dando-a de presente a cabeça dele numa bandeja.

Charles Boycott, capitão inglês, cuidava das terras de um nobre irlandês. Enfrentou o sindicato de trabalhadores rurais, que resolveu nunca mais deixar nenhum filiado ser empregado nas terras que ele cuidava. Feito isso, nasceu o termo "boicote", que é a mesma coisa que cancelar.

Aprovação e reprovação sádica no talo, prazer em ser um Santo Inquérito privé, vendeta particular ao ver alguém de sucesso se estressar. Diferentinho de boicote e sabotagem, cancelar é mais "do Menu" de um restaurante gourmetizado, é destinado a um produto, não a uma pessoa realmente. É uma sabotagem coletiva com o propósito de remover alguém de sua liberdade de expressão. A J-K Rowling já é famosa, então não é simplesmente um ataque a uma pessoa qualquer, é um produto, um universo. Falou um disparate, humanizou-a (rebaixou-a) de qualquer maneira, foi cancelada.

Às vezes esse mercado de dar voz a uma turma que não sabe muito das coisas é perigoso. Tipo a turma do Omelete – que raios eles sabem de cinema? Falar que um filme da Marvel é o mais incrível da história me parece lobby de estúdio de dublagem. Só pra ter estande na CCXP?

E o filósofo italiano Berardi que pediu ao Vaticano a abolição final do inferno?

Diz-se que x descontruidãx é não-binárix. Portanto, não cartesianx.
Pode ser não maniqueístx?

Regime totalitário Neopentecostal do Brasil!

#decolonizethisplace!

Linchamento virtual pode virar tuíte terrorista!?

Tem cantora pop que é in-cri-ti-cável!?

(emoticom de susto inspirado em "O Grito" de Munch)!

Liberdade tem asas… e o grupo da direita extremista alemã é o Flügel! (asas).

Nitrato de amônia, o fertilizante explosivo que ninguém sabia existir!

Garçom, pode só cancelar 2020?

Se a garganta não inflama, nossa alma explode.

Contemplemos afinal as belezas… e o que é belo… nas Belas Artes, nas multidisciplinaridades da arte, a poesia, o cinema, mananciais de todas as nossas alegrias e assombros.

Sinto que escrever aqui  – e ao tornar o texto público – é como editar um filme e deixá-lo em cartaz. Pensamentos editados… faux raccord… um curta por semana… o mundo é linguagem… editar é manejar as ideias do passado, presente e futuro…

Seguimos a lista:

12 – Red Dust (1932), Victor Flemming – do diretor de "…E o Vento Levou" e "O Mágico de Oz", a comédia romântica tem efeitos especiais incríveis. Em plena selva da Indochina, Clark Gable faz um machão desgraçado e inacreditável (mais que qualquer cowboy normativo já visto). Ao seu contraponto, brilha Jean Harlow, divertida, empoderada, malandra e sapeca, causando com tudo e todos, repleta de charme – ousadíssimo para a época, chocante até hoje, quase 100 anos depois!

13 – Rede de Ódio (2020), Jan Komasa. Do jovem diretor polonês (apenas 38 anos, sétimo longa-metragem), o drama psicológico acaba de estrear no streaming da Netflix. A Polônia está em alta com ótimos filmes, séries, manifestações criativas e atrizes bonitas. Este é um dos melhores exemplos, com beleza estética (longe de ser cosmético), perfaz um corte transversal nas moralidades contemporâneas. Os olhos inchados e a cicatriz no rosto do protagonista conta a história da Europa inteira.

Sem vontade de ver um filme? Fique com este poema:

(leia em voz alta, faça uma live-sarau, etcétera e tal).

ÍTACA, de Konstantinos Kaváfis (1863 – 1933)

Se partires um dia de volta a Ítaca,

pede que o caminho seja longo,

rico de experiências, rico de saber.

 

Não temas lestrigões nem os ciclopes,

nem nunca o Posidon furibundo;

não acharás aqueles seres na tua rota,

se for alto o teu pensamento

e sutil emoção mantiveres em teu corpo e teu espírito.

 

Nem ciclopes, nem lestrigões,

nem o Posidon bravio acharás nunca,

se tu mesmo não os trouxeres em tua alma,

se a tua própria alma não os puser diante de ti.

 

Pede que o caminho seja longo!

 

Sejam numerosas as manhãs de verão nas quais tu,

com prazer, com felicidade,

aportes em baías nunca vistas;

demora-te em empórios da Fenícia

e compra belas mercadorias,

madrepérola e coral, e âmbar, e ébano,

perfumes deliciosos e diversos;

quanto puderes, investe em perfumes,

voluptuosos e delicados.

 

Visita muitas cidades do Egito

e,com avidez, aprende dos seus sábios.

 

Guarda Ítaca sempre na memória.

A tua meta é lá chegar.

Mas não apresses a viagem.

 

Melhor é que ela dure longos anos,

e que chegues à tua ilha na velhice,

com o que tiveres ganho pela estrada,

sem esperar que Ítaca te enriqueça.

Ítaca te presenteou uma bela viagem.

Sem Ítaca, não terias te aventurado.

 

Mas nada além ela te dará.

Mesmo que a encontres pobre, Ítaca não terá te enganado.

 

Rico em saber e em vida, como voltaste,

entendes, por fim, o que significa uma Ítaca.

@steinberg__

Edição final: Guilherme Mazzeo

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.