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GV CULT - Criatividade e Cultura

Etnologia indígena no Brasil(II): contribuição de João Pacheco de Oliveira

GvCult - Uol

03/03/2020 06h10

Tribo Ticuna – povos indígenas brasileiros.

Por Bernardo Buarque de Hollanda

A coluna da quinzena passada tratou da temática indígena no Brasil à luz da contribuição de um conceituado antropólogo brasileiro, Eduardo Viveiros de Castro, professor titular do Museu Nacional (UFRJ), autor de uma tese ancorada em pesquisa de campo publicada em livro: Araweté – os deuses canibais (1986). Em linha de continuidade, veremos no texto de hoje a obra de outro nome de ponta da antropologia social brasileira. Trata-se de João Pacheco de Oliveira Filho, vinculado à mesma instituição de Eduardo, o Museu Nacional, e autor de Os Ticuna e o regime tutelar, publicada no mesmo ano de 1986.

Ainda que os autores estejam institucionalmente tão próximos, e participem da mesma geração, formada nas primeiras turmas dos programas de pós-graduação em Antropologia Social no Brasil, ambos têm abordagens distintas no modo de lidar com o trabalho de campo, com certas premissas antropológicas e com seus potenciais desdobramentos teóricos. Eduardo atém-se mais às concepções e visões de mundo intrínsecas às representações dos grupos indígenas, sua cosmologia, por exemplo, ao passo que João Pacheco envereda pelas questões históricas derivadas do contato interétnico. Postula, pois, a observação da relação dos índios com a sociedade envolvente e com órgãos governamentais do Estado brasileiro, como a Funai, órgão oficial fundado em 1967, durante a ditadura civil-militar.

Em Os Ticuna e o regime tutelar, João Pacheco aborda o sistema político deste povoado indígena, situado no estado do Amazonas, em suas bordas fronteiriças com o Peru e a Colômbia. Examina a história de seus chefes tribais e, principalmente, a evolução do relacionamento entre o governo federal, os índios e os seringalistas.

João Pacheco desenvolve a questão acima na tentativa de compreender o motivo pelo qual este povo amazônico, que em suas origens possuía uma organização do poder sem hierarquias, caracteriza-se por um regime político centralizado. Segundo o autor, tal fato deve-se às constantes relações que os indígenas foram levados a estabelecer com o mundo dos brancos.

Outro ponto correlato diz respeito à descrição da sucessão dos líderes escolhidos como chefes da tribo e a maneira conforme estes eram vistos pelos autóctones. Um último aspecto, mais explorado nos capítulos 8 e 9, aborda a relação histórica entre os funcionários do SPI – Serviço de Proteção aos Índios (órgão da época de Getúlio Vargas, que antecedeu a Funai) – e os Ticuna. Destaca-se a forma de relação dos mesmos, ora comportando-se como defensores dos direitos daquele povo, ora como meros burocratas a executar um serviço como outro qualquer.

Na mesma proporção em que colocamos para o livro de Eduardo Viveiros de Castro, cabe perguntar se a tese de João Pacheco pode ser examinada com base nos paradigmas classificatórios propostos por Roberto Cardoso de Oliveira e Mariza Peirano, quais sejam, a díade sincronia/diacronia, empirista/intelectualista, bem como a concepção de linhagem.

A associação mais imediata, em contraste com o trabalho de Eduardo, é que João Pacheco analisa seu objeto a partir da diacronia. A dimensão temporal e a perspectiva diacrônica do sistema político, das lideranças e dos encarregados do SPI acham-se sempre involucrados no texto. A tentativa de compreensão daquilo que é coetâneo ao pesquisador utiliza-se dos fatos pretéritos e do eixo encadeador passado/presente. A ratificar tal ponto de vista, pode-se assinalar referências feitas pelo autor a estudos anteriores sobre os Ticuna. Entre eles, a do próprio Roberto Cardoso de Oliveira, e também as citações transcritas de arquivos históricos pertencentes ao governo federal.

Além disso, João Pacheco vale-se de outras monografias similares sobre o assunto, existentes na literatura etnográfica internacional, como a do antropólogo social britânico Max Gluckman (1911-1975), a respeito do povo Zulu e sua relação com o governo sul-africano. Opta-se então pela diacronia em detrimento da sincronia.

O segundo aspecto a ser discutido constitui uma tarefa mais complexa, pois não é possível estabelecer uma relação unívoca com os conceitos "empirista" e "intelectualista". Tendo em vista a opção pelo primeiro, este ajusta-se apenas parcialmente à tese, na medida em que se trata de uma etnografia interessada na apreensão do sistema político Ticuna, assim como em seu histórico e em sua singularidade. Todavia, a mesma não se restringe à descrição, mas busca debates mais amplos como o processo em que se desenvolve o exercício da tutela e onde este se estriba.

Já sob o prisma intelectualista, o consenso continua inexistente. Embora verifique-se o estabelecimento de esquemas estruturalistas que estipulam variações e alternativas, o Autor critica as concepções dualistas de entendimento do comportamento humano:

"A força explicativa e a atração exercida pelo dualismo como chave de compreensão de uma situação de contato interétnico deriva em grande parte de seu esquematismo e das interpretações simples e elegantes que propicia. De fato o que o esquematismo dualista pressupõe é que exista uma correspondência unívoca entre atores e códigos de orientação…".

A antropologia interpretativa, por seu turno, aparece em menor grau, nos momentos em que João Pacheco de Oliveira questiona a posição do sociólogo na pesquisa e, mais precisamente, no tratamento das relações interétnicas entre os Ticuna e a sociedade abrangente.

No que concerne à questão da linhagem, tenho duas considerações a fazer. A primeira é que a conexão que proponho entre o autor e uma concepção política de linhagem presente em Evans-Pritchard (1902-1973), em seu livro Os Nuer, datado de 1940. Nesta antológica e saborosa monografia, o antropólogo inglês dizia que o referido povo, situado na África sudanesa, consistia numa unidade política que continha segmentos e ramificações internas separadas por clãs e áreas geográficas, mas que se mantinha coesa na medida em que guerreava com outras culturas.

A ilação da população africana daquele trabalho monográfico com os Ticuna decorre do fato de que este grupo indígena caracteriza-se por uma série de diferenças entre as famílias, as linhagens clânicas e os grupos vicinais que se dividem muitas vezes, no curso do Rio Solimões. Possuíam em teoria, pois, um regime descentralizado, mas, na prática, devido à necessidade de comunicação com os seringueiros e a sociedade abrangente, utilizavam-se de um líder central representante da unidade cultural e política da tribo.

A segunda e última consideração refere-se a pontos de contato desse texto, não em seu todo, mas em parte, com a linhagem inaugurada por Bronislaw Malinowski (1884-1942). Inspiro-me nesta livre associação na forma como o antropólogo polaco concebe o kula – sistema de integração e permuta econômico-cultural que dá funcionalidade aos aborígenes das ilhas Trobriand, no Pacífico ocidental – e a relação deste com o seguinte trecho conclusivo da tese de João Pacheco:

"Esses grupos possuem uma realidade cotidiana, propiciando um universo primário de sociabilidade, onde trocas matrimoniais terminam por relacionar diretamente todos os que habitam aquele mesmo espaço. Desse grupo pode ocorrer uma partilha de alimentos (quanto isso for necessário) e se desenvolve um sentimento de solidariedade que repercute no plano das atividades econômicas e cerimoniais". 

Edição Final: Guilherme Mazzeo

 

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.