Topo

GV CULT - Criatividade e Cultura

Durkheim e as primícias da Sociologia.

GvCult - Uol

01/10/2019 06h30

Por Bernardo Buarque de Hollanda

Émile Durkheim (1858-1917) vivenciou acontecimentos marcantes na Europa e na França ao longo de sua trajetória. Mudanças radicais atingiram o mundo nesse período, entre fins do século XIX e início do XX. Todas as esferas da vida foram modificadas: políticas, sociais, morais, econômicas e culturais. À guisa de introdução, vejamos algumas dessas transformações:

1ª Proclamação da III República na França em 1870;

2ª Comuna de Paris em 1871;

3ª Criação da lei que instituiu o divórcio em 1882 na França;

4ª Acirramento da luta de classes no país;

5ª Segunda Revolução Industrial – era do aço e da eletricidade;

6ª Renovação na literatura e nas artes, com o advento do impressionismo;

7ª Neocolonialismo;

8ª Progresso da ciência e da democracia;

9ª Primeira Guerra mundial;

10ª Socialismo na Rússia;

Em seu percurso acadêmico, Durkheim estabeleceu contato com eminentes intelectuais de seu tempo, tais como Henri Bergson, Charles Renouvier, Boutrouse e Wilhelm Wundt. Recebeu influência das ideias de Montesquieu, Georg Simmel e Ferdinand Tönnies. Ao longo de sua carreira não chegou a tomar conhecimento da obra do pensador alemão Max Weber, seu contemporâneo e hoje igualmente um clássico da Sociologia. Seu período mais fecundo, quando da elaboração de sua obra principal, corresponde à última década do século XIX, mais precisamente aos anos de 1893 a 1899.

Durkheim empenhou-se na institucionalização da Sociologia na França em fins do século XIX. A disciplina aparecera no início daquele mesmo século, cunhada por Auguste Comte, com a designação de uma "engenharia da sociedade". Tal institucionalização veio acompanhada de uma metodologia consistente, com vistas a conferir à Sociologia um caráter científico indubitável. Para tanto, o autor propôs a substituição de leis genéricas e teóricas, até então predominantes na matéria, para uma atuação direta no interior da sociedade, buscando a especificação do estudo e a diversidade própria da natureza coletiva.

A concepção de ciência durkheimiana está vinculada a uma metodologia que permita a elucidação de objetos, fatos e manifestações empíricas. Não obstante, seu procedimento em busca de tal conhecimento despe-se de finalidades e resultados, por assim dizer, práticos. Tal entendimento do métier sociológico vinca-se a princípios científicos, no sentido de compreender e de estabelecer leis sociais de maneira coextensiva à existência das leis das ciências naturais, tais como estabelecidas previamente.

A dificuldade de proposição de leis gerais que regem a sociedade ocasionou o ingresso tardio da Sociologia no rol das disciplinas científicas, sendo, pois, objeto de desconfiança e polêmica. Formado sob o cânon positivista, Durkheim via o método como uma necessidade básica e incontornável para a organização e explicação na Sociologia dos fenômenos sociais. As regras metodológicas consistem em árduo trabalho de apuração, descrição e classificação, segundo formas mais simples, até as mais complexas.

Para mostrar como Durkheim debruçou-se sobre fenômenos concretos, vejamos sua monografia exemplar, intitulada O suicídio (Le suicide). Na obra, postulou uma metodologia clara e eficiente, com utilização de séries estatísticas como fonte de aferição do comportamento coletivo em sociedade. Graças ao método, o autor é capaz de confrontar a interpretação psicologizante daquele que sacrifica a própria vida e desmistificar um pensamento errôneo geral do período acerca do tema-tabu. Trataremos do assunto mais à frente.

A posição metodológica empalmada por Durkheim é estritamente sociológica. Trocando em miúdos, ele considera que a auto regulação do "reino social" torna a Sociologia uma ciência peculiar e independente. Outra perspectiva adotada pelo pensador francês, formado originalmente em Filosofia, defende a objetividade da metodologia e o afastamento, por conseguinte, do olhar filosófico especulativo sobre a interpretação da realidade.

Durkheim toma, pois, os fatos sociais como "coisas". Isto é, seu primado intelectual concebe a sociedade segundo três instâncias: A. um todo orgânico; B. um modelo funcional; C. um fundamento positivo para apreender o meio social.

Com base na concepção sociológica, podemos entender de que maneira monta-se seu esquema teórico. Para tanto, há uma série de conceitos. A diacronia, que faz interpolar solidariedade social e anomia; a sincronia, que observa a morfologia social – indivíduo, grupos e instituições; e a fisiologia social, mais associada no vocabulário durkheimiano à consciência coletiva e às representações coletivas.

Conceitos-chaves também são os de "sociedade" – atos coercitivos sobre indivíduos ou grupos; "religião", esfera de representações coletivas; "moral": um fato social que se impõe aos indivíduos através da coerção. "Divisão do trabalho": tipos de solidariedade social ancorada no organicismo. E, last but not least, a "solidariedade social": reunião da consciência individual e da consciência coletiva, de modo a ligar o indivíduo à sociedade.

Há também duas expressões relacionadas à dimensão solidária que merecem definição, posto que reciprocamente imbricados. Para Durkheim, o que é "solidariedade mecânica" e "solidariedade orgânica"? A mecânica caracteriza-se por um corpo social homogêneo, que possui uma consciência coletiva presente em todos os indivíduos. O direito tem de exercer uma autoridade muito severa, de modo a impedir o afrouxamento da ordem social. É uma sociedade em que o indivíduo e sua consciência atomizada têm pouca relevância, movendo-se mecanicamente como "coisas".

Já a solidariedade orgânica manifesta-se em sociedades nas quais predomina a divisão social do trabalho. Qual um corpo humano, o tecido social apresenta-se separado e, ao mesmo tempo, interdependente. Cada membro da sociedade desempenha uma função. Logo, para além da consciência comum, a individual também é manifesta. Portanto, a dimensão orgânica da sociedade tem significado relativo, tal como um determinado órgão no interior de um grande organismo.

O sociólogo brasileiro José Albertino Rodrigues, especialista em Durkheim, considera decisiva a influência conceitual durkheimiana para o desenvolvimento da sociologia como disciplina científica. A seu juízo, o que torna o sociólogo francês um clássico, um founding father, é a capacidade que o francês tem de explicar a realidade, seja ela natural, física ou mental, sob a ótica do social. A penalidade, por exemplo, um instrumento básico do direito repressivo, existe para favorecer a coesão e evitar o relaxamento da ordem, constituída socialmente, representante da consciência comum.

Tal como supracitado, voltemos ao aspecto definidor do suicídio sob as lentes sociológicas. Como entender esse fenômeno limite sacrificial da existência humana? A abordagem durkheimiana entende que o suicídio tem taxas variáveis segundo os diferentes países. Assim como a Psicologia tenta compreender as causas e motivações mentais que levam um indivíduo a se matar, a Sociologia busca explicações na história de cada nação capazes de mostrar por que seres humanos decidem pela morte voluntária.

A observação estatística leva o sociólogo francês à inferência de que o sacrifício da própria vida tem certa constância numa dada sociedade e se mantém equilibrado durante períodos temporais consideráveis. Além disto, constata que o suicídio tem suas taxas elevadas em épocas extraordinárias da vida coletiva, como guerras, crises econômicas e depressões políticas. A desestabilidade no ambiente social tende a aumentar o número de imolações fatais.

Em face da legitimidade da abordagem sociológica do tema, Durkheim passa a categorizar tipos de suicídio. O primeiro denomina-se egoísta. Uma das frases fundamentais para a compreensão das causas sociais do suicídio é aquela que afirma ser ela inversamente proporcional ao grau de integração do grupo a que o indivíduo pertence, a exemplo da família, da religião e da política, entre outros pertencimentos.

Isso ocorre quando a sociedade se desintegra, favorecendo o enfraquecimento dos grupos sociais. Tal desestabilização propicia a alguns indivíduos sua sobreposição perante o grupo. Por conseguinte, pode-se dizer que o suicídio de tipo egoísta caracteriza-se por um grau de individualização desmesurada: "Este tipo de suicídio bem merece pois o nome de lhe damos. O egoísmo não é fator simplesmente auxiliar; ele é a causa geradora".

Já o suicídio altruísta tem por característica a submissão do indivíduo a uma causa maior que envolve seu agrupamento. Durkheim postula que esta modalidade de suicídio tende a estar presente de forma marcante nas sociedades ditas primitivas, ou em grupos endógenos, em que a consciência individual encontra-se subordinada à consciência coletiva. Não obstante, tal tipo também manifesta-se nas sociedades ditas civilizadas. Pode-se encontrar exemplos disto entre integrantes de instituições como o Exército, a Igreja e mesmo a política, tal como sucedeu, exemplo nosso, no suicídio de Getúlio Vargas.

"É por isto que chamaremos de suicídio altruísta aquele que resulta de um altruísmo intenso. Mas visto que ele representa, além disso, tal característica que o considera como um dever, é necessário que a terminologia adotada exprima essa particularidade. Daremos pois o nome de suicídio altruísta obrigatório ao tipo assim constituído".

O terceiro tipo chama-se anômico. Antes de avançar na exposição, cabe perguntar: qual é a lógica classificatória do suicídio? De acordo com as palavras do autor: "O suicídio egoísta resulta de que os homens não veem mais razão de ser na vida; o suicídio altruísta de que esta razão lhes parece estar fora da própria vida; o terceiro tipo decorre do fato de que está desregrada a atividade dos homens, e é isto que eles sofrem".

A partir dessas três categorias, podemos propor uma lógica para a classificação. Depreende-se que a espécie de suicídio é classificada conforme a relação entre o comportamento individual e o comportamento social.

Por fim, para não delongar demais este texto, mencionemos outra temática de que Durkheim se encarregou de mudar o olhar tradicional. Trata-se da religião. O estudo da natureza religiosa do homem faz-se de uma maneira difícil para o entendimento, pois há diversas expressões e manifestações de concepção de mundo derivadas das mesmas. Por razões de método, o sociólogo deve recorrer à história, que possibilita a percepção das origens da religião, bem como de seu desenvolvimento histórico. As religiões ditas "simples" têm uma vantagem ao estudioso: elas possibilitam a observação de seus componentes mais básicos, uma vez que a consciência individual encontra-se subordinadas à consciência coletiva.

A religião é, pois, a representação coletiva da própria sociedade, na medida em que ela simboliza a relação entre o homem e o sagrado, entre o ser humano e a entidade divina. O sobrenatural reflete justamente o que é uma crença coletiva, visto que a mesma está acima dos indivíduos e impõem-se sobre os homens, de forma moral e coercitiva.

Edição Final: Guilherme Mazzeo

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.