Freud, o sujeito na obra de arte
Por Bernardo Buarque de Hollanda
De acordo com o teórico Luiz Costa Lima, em Mimesis: desafio ao pensamento (2001), livro reeditado pela Editora da Universidade de Santa Catarina/UFSC em 2014, a apreciação das ideias de Sigmund Freud (1856-1939) acerca da psiquê humana traz elementos importantes para a discussão geral da relação sujeito/representação na modernidade e suas implicações no âmbito da arte. A leitura de passagens da obra do fundador da psicanálise permite a observação da existência do que Costa Lima chama de "sujeito fraturado", envolta agora pelas brumas do inconsciente e do pré-consciente.
A fragmentação do sujeito não impede o estabelecimento de representações pertinentes, que se apresentam, todavia, insubmissas ao cálculo, à verificação e à linguagem cartesiana. O aprofundamento das noções de inconsciente, de representação da libido e de desejo leva às críticas de Mikkel Borch-Jacobsen ao fundamento das ideias freudianas aplicadas ao campo artístico. As ressalvas do escritor de origem dinamarquesa ensejam ainda profícuas reflexões sobre a "poética" da criação na arte, em especial sobre o papel da mímesis no exame de poemas italianos do primeiro quartel do século XX.
Para Freud, a condição fundamental do ser humano é a busca por prazer. Este princípio que rege a vida entra, contudo, em choque com o princípio de realidade, a que o homem tem de se submeter de maneira inelutável. O confronto de tais princípios resulta na necessidade da aprendizagem do diferimento do prazer, em que o indivíduo se integra na sociedade limitando seus anseios e podando suas vontades primordiais, como o impulso sexual.
O diferimento e a sublimação do prazer superpõem-se, no cotidiano, à repressão e ao recalque. Este último ativa inconscientemente o mecanismo do esquecimento e dos lapsos de memória, com vistas à defesa do princípio de realidade e ao bloqueio de conexões cruciais para o homem. A decifração da fala como um enigma verbal revela a origem dos conflitos psíquicos, da mesma forma que os sintomas indicam o aguçamento do desajuste entre dois significados antagônicos. Um significado é oriundo da energia pulsional do inconsciente, enquanto o outro é uma força do ego pré-consciente.
Ainda segundo Borch-Jacobsen, o inconsciente recalca as prescrições da realidade sob a forma de figuras, imagens e coisas, ao passo que o pré-consciente armazena informações ligadas à palavra, passíveis de verbalização e de expressão sígnica. Tal entendimento propicia o início das ponderações do professor, para quem a associação freudiana entre o inconsciente e o pensamento visual – ou icônico – desvia a percepção apropriada do desejo e da sua função.
Borch-Jacobsen assinala a excessiva relevância concedida por Freud à primazia da realidade e aos seus reflexos sobre o inconsciente. O desejo tornou-se a seu juízo objetualizado, isto é, tomou como referência o universo externo e o efeito que ele causa no sujeito. O ser foi subordinado por Freud à ideia de ter, à busca da realização no outro e à dissimulação no espectro do fantasma.
O autor dinamarquês substitui o objeto do desejo pela ênfase no sujeito do desejo. Destarte, a relação entre sujeito e representação pode ser pensada à luz de um terceiro fator: a identidade. O sujeito é guiado por uma carência identificatória e visa à satisfação de uma identidade subjetiva, o que mostra como Borch-Jacobsen orienta-se implicitamente através de uma visão de sujeito central e imperial.
O mérito do livro de Borch-Jacobsen sobre Freud – The Freudian subject (1988) – repousa na tentativa de restabelecer o liame entre desejo e mímesis. Para isto, Costa Lima lança mão de dois circuitos argumentativos, que perscrutam a posição da mímesis no tocante à arte e à realidade na época moderna.
No primeiro circuito de argumentação, acentua-se o conceito mais corrente de mímesis da representação. Freud é aqui reabilitado, no sentido de que toda a produção artística depende de um real prévio para a sua concretização. O paradoxo haurido entre esta dependência do mundo e a criação de uma situação nova de mundo, em que a obra ultrapassa a intencionalidade do autor, geral o potencial crítico do intérprete.
O mesmo não sucede no segundo circuito argumentativo, onde se avalia a mímesis de produção, de incidência menos frequente no campo da arte. Os objetos poéticos de que trata esta mímesis podem conter tão-somente um único traço representacional, perdendo quase por completo vínculos com a realidade. O fulcro dos poemas de Giuseppe Ungaretti (1888-1970) e Salvatore Quasimodo não é o imbricamento do poiétes com o mundo, mas a captação do instante originário, que se despoja da representação-efeito e prescinde da interpretação.
Edição Final: Guilherme Mazzeo
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