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GV CULT - Criatividade e Cultura

Nietzsche contra a ingaia ciência

GvCult - Uol

09/07/2019 06h01

Por: Bernardo Buarque de Hollanda

Segundo o teórico da literatura Luiz Costa Lima, em Mimesis: desafio ao pensamento (Civilização Brasileira, 2001; reeditado pela Editora da Universidade de Santa Catarina/UFSC em 2014), as ideias de Friedrich Nietzsche são fundamentais para refletir criticamente sobre o par sujeito/representação, tal como ele se inscreve na tradição do ideário científico moderno.

Tal tradição tem como precursor René Descartes que, na primeira metade do século XVII, postula a primazia do sujeito na atividade do pensamento, através da sua faculdade lógica e racional, depuradora das sensações e imprecisões que embaçam os sentidos. Guiado pelo cogito, o homem apreende as leis que regem a natureza, com objetividade, clareza e precisão.

Embora não conceba a relação entre o sujeito e o conhecimento como algo mecânico e direto, pode-se situar a filosofia de Immanuel Kant na mesma direção de Descartes. O filósofo alemão acredita na construção do conhecimento e da representação por meio de uma série de operações sintéticas que levam à apercepção transcendental, à ênfase na consciência do sujeito e a um sujeito formal.

Com Schopenhauer inaugura-se na tradição científica moderna, segundo a interpretação mais corrente, a primeira clivagem na unicidade do sujeito e, por conseguinte, da representação. Ainda que reconheça a dimensão racional do homem, o escritor alemão – contemporâneo do primeiro romantismo, do início do século XIX – esposa a ideia de que a razão ocupa apenas a face superficial do ser humano.

A outra face, essência misteriosa e núcleo vital do sujeito, seria a vontade, de onde provém a intuição, que se estende além do mero entendimento e da simples verificação. O sujeito apresentar-se-ia assim cindido entre o princípio de razão e o princípio de vontade. Já a representação abrangeria tão-somente uma faixa parcial e restrita do mundo.

Qual seria então a contribuição do pensamento nietszheano aos conceitos de sujeito e representação na teoria moderna? O que as ideias de Nietzsche trazem de novo para esse debate?

O propósito primordial de Nietzsche era aquebrantar a posição superior em que se colocava em sua época a ciência, desconstruindo o seu discurso e tudo que ele implicava para a concepção de sujeito central e de representação objetiva da realidade. Ao desmistificar a superioridade científica, em favor de uma "gaia ciência", ou de uma história feita para a vida, Nietzsche apresenta a sua visão sobre a questão decisiva para o homem, a saber, o seu impulso animal para a dominação. Esta dominação ele chama de "vontade de potência".

Com a intenção de perceber os instrumentos de que se vale Nietzsche para combater a moral dos valores científicos, sucedânea da moral religiosa, que mascara o impulso fundamental do ser humano, vamos acompanhar seu escrutínio delineando seus argumentos principais. A fim de facilitar a compreensão deste breve texto, estabeleço 6 itens, abaixo arrolados, que pretendem mostrar como Nietzsche não visa a destruição do sujeito e da representação, mas sim a desconstrução de um discurso que se arvora superior e único:

 

1ª A ilusão da verdade;

2ª Da vontade em Schopenhauer à vontade de potência em Nietzsche;

3ª O ataque à causalidade;

4ª O campo da moral;

5ª O esvaziamento do sujeito;

6ª A questão da linguagem;

 

1ª. O primeiro argumento combatido por Nietzsche é a concepção cartesiana de verdade, em que impera a noção de oposição essencial entre verdadeiro e falso. Nietzsche procura mostrar como o julgamento falso é importante para a sobrevivência e para a conservação da espécie humana.

O mundo dos números, as leis da natureza e a linguagem geométrica proposta por Descartes para explicar o seu método de alcançar a verdade nada mais são do que ficções lógicas para Nietzsche. Assim, o que para Descartes situava-se em territórios antagônicos, o campo da lógica como observação da realidade e o campo da ficção como invenção da imaginação, são colocados no mesmo polo por Nietzsche, que ataca de forma veemente a hipocrisia cartesiana.

2ª. Se, para Nietsche, o que guia o ser humano não é o princípio da razão como em Descartes, pode-se pensar que ele siga a concepção de Schopenhauer acerca da vontade, como a parte oculta, íntima e vital do homem. Aceito em parte, o conceito de vontade é radicalizado e complexificado por Nietzsche, que parte de um veio darwinista, muito presente em sua época, a definir a questão decisiva para o homem – a questão da sobrevivência, isto é, o impulso de domínio dos mais fortes sobre os mais fracos.

3ª. Desconstruída a ilusão de verdade em Descarte e definido o conceito nietzschiano de vontade como impulso de dominação e paixão de comando, passa-se ao ataque à ideia de causalidade, conceito que se situa no âmbito da representação cartesiana. Para Nietzsche, não há no mundo "em si" nem causa nem efeito, sendo estes conceitos convenções ficcionais – tema aprofundado um século depois por Foucault –, em que a ciência elabora um discurso mitológico sobre o mundo.

Logo, o que há no mundo para Nietzsche não são representações falsas nem verdadeiras, mas vontades fortes e vontades débeis, isto é, aquelas que se impõem e aquelas que são dominadas.

4ª. Destarte, sujeito central e representação objetiva da realidade nada mais são do que convenções ficcionais, que servem, através da moral do discurso, de refúgio para o homem que se afasta dos apetites e das paixões animais. Chega-se desta forma à questão capital aventada pelo filósofo em tela: como se forja no discurso científico o juízo sobre o bom, sobre a bondade e o que a moral encobre nas relações humanas.

Para Nietzsche, a moral é uma máscara angelical que dissimula a animalidade do homem e justifica a relação assimétrica entre poderosos e lassos.

A fim de exemplificar tal ordem de mascaramento, o autor recorre a um exemplo histórico medieval, em que a aristocracia sacerdotal e a aristocracia guerreira colocam-se em duelo pelo poder. Dada a impotência física da primeira, Nietzsche evidencia como ela se vale das astúcias do discurso para tornar vil tudo que diz respeito à compleição física do indivíduo combatente e, por conseguinte, à robustez corporal da aristocracia guerreira. Assim, proeminência política converte-se em proeminência espiritual pelos aristocratas sacerdotais.

Outro exemplo do campo da moral desenvolvido por Nietzsche é o cristianismo, a religião da piedade e do temor, que converte a fraqueza em força histórica e em dominação secular. É como se Nietzsche quisesse mostrar a potência do discurso da impotência por meio do caso religioso.

E, nesse sentido, ele mostra como o seu darwinismo não descamba para o determinismo biológico. O homem, ser dotado de inteligência, diferencia-se do reino animal, pois neste sempre o mais forte domina o mais fraco, ao passo que naquele o mais franco pode vir a subjugar o mais forte, como comprova cabalmente, a seu juízo, o fenômeno institucional da religião cristã na história do Ocidente.

5ª. Como resultado da crítica nietzschiana aos juízos de valor da ciência, tem-se o esvaziamento da concepção de sujeito solar descartiano. Sem embargo, o intuito de Nietzsche não era nem destruir o sujeito nem tampouco vilipendiar a representação. O seu combate visava, em contrapartida, à desconstrução de seu discurso de nobreza e de condição sublime. Há, pois, em Nietzsche, a ambição de que se instaure uma nova forma de potência no sujeito e não simplesmente que ele seja descartado, o que seria um paradoxo.

6ª. Mediante a brecha aberta pelo esvaziamento do ser e pela crítica ao discurso científico, Nietzsche introduz um ponto fulcral para o homem: a questão da linguagem. Até então ela não ganhara um maior realce nos pensamentos de Descartes, Kant e Schopenhauer. Com Nietzsche, a dimensão linguística se torna ativa, porquanto é ela quem forja as ficções discursivas, assim como é ela quem as destrói.

Nietzsche vai buscar na retórica da Antiguidade, em que a fala prepondera sobre a escrita, a percepção de que há na oralidade uma força persuasiva que ultrapassa os limites da verdade. A linguagem, não mais um meio transparente de que se vale o ser humano para representar o universo que o involucra, ganha ascendência sobre o próprio homem, até então tido e havido por solar, imperial, central.

Para arrematar, volvemos a Costa Lima, que sumariza os principais pontos do pensamento aforístico nietzschiano, por intermédio da seguinte pergunta: em que sentido se pode falar de uma fratura do sujeito em Nietzsche?

  • O sujeito possui um fundamento animal – a necessidade de sobrevivência e o impulso para a dominação, que é mascarado pela moral. Esta arvora-se superior, única e nobre;
  • A moral é um conjunto de juízos de valor que justifica a assimetria das relações humanas superpondo determinados indivíduos e grupos sociais a outros.
  • A linguagem é a faculdade e o distintivo humano capaz de inventar mitos e de criar ficções nobres. Com isto, ela ascende sobre o próprio homem, posto que, ao estudarmos os mecanismos de comunicação linguística, compreendemos a ordenação, o sentido e a coerência dada ao mundo.
  • Condicionado pela linguagem, o ser humano tem nela uma força alheia à questão da verdade, na medida em que o poder linguístico se situa no plano retórico, no âmbito da persuasão, na esfera do convencimento, mais do que da demonstração.
  • Lastbutnotleast, a história humana é dilacerada, porque nela os homens mais fracos do ponto de vista biológico, através da inteligência, da vontade e da linguagem, tem a possibilidade de se impor aos indivíduos mais fortes.

Edição Final: Guilherme Mazzeo

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.