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GV CULT - Criatividade e Cultura

Considerações sobre a música de Luiz Gonzaga

GvCult - Uol

25/06/2019 06h10

"Na ordem da esquerda para direita: Dorival Caymmi, Luiz Gonzaga, Tom Jobim, Caetano Veloso e Chico Buarque.                 Foto: Vangelis Rassias / Crédito: Jobim Organization, Acervo Chico Buarque."

Por: Bernardo Buarque de Hollanda

Eis que surge, de um relance, a enigmática e serena figura de um cangaceiro: tez moreno-rubra, cor de barro descascado pelo sol, maçãs salientes, cara de lua-cheia, sorriso triangular unido ao chapéu de coro, com a estrela de David, de oito pontas. Após contornar as lindes da face, os espectadores vão declinando os olhos até que, num instante, produz-se nova surpresa: a arma do cangaceiro é uma sanfona, um fole deslumbrante, caixa de ressonância que vai e vem no colo do cantor. É Luiz Gonzaga (1912-1989) seu portador. Ao disparar seu gatilho, faz ricochetear seu tiro sonoro pelos quatro cantos do salão. Finda-se a dor dos sertanejos, tem início o baile e seu arrasta-pé.

De onde vem o desejo pela música: do sofrimento da lida cotidiana ou do prazer inesperado da festa? Pessoas que prezam a vida, mesmo Severina, e decantam a alegria dos versos de Gonzaga em Dezessete léguas e meia: "Eu viajei sem parar/ 17 légua e meia / pra ir no forró dança / ai aiaiai". Ou por outra: "Os escravos no terreiro não paravam de dançar" – eis o sumo da contradição brasileira, que persiste até os dias de hoje. "Ser tão tudo nonada", epigrafava Gilberto Vasconcellos, o sociólogo da paixão pelo folclore, em homenagem a Guimarães Rosa.

O amor como arte da combinação, a dança como coreografia do prazer. As notas que ressoam na música sanfonada: sol & dó. As notas do sertão: sol & dor. Sob esse compasso plangente é regida a vida e nela tentaremos esboçar um perfil de Gonzaga, por meio da composição binária artista/camponês. A junção das duas palavras tem na origem do conceito de cultura o seu liame. Pois cultura e criação referem-se tanto à arte – no sentido de bens espirituais oriundos de uma civilização – quanto ao campo – no sentido de cultivo da terra e trato de animais.

Seja qual for o caminho, é uma trilha árdua. Por isso convém antes indagar: quem é o artista? Imerso nas peripécias da criação, o artista é um indivíduo capaz de exprimir toda angústia e toda magia de um povo. Através da sensibilidade, projeta seu drama e sua beleza, sua força e fraqueza às gerações, que vão a partir daí transformando a maneira de ver o mundo.

Para responder à segunda questão, arguo Francisco Julião, líder históricos da Ligas Camponesas: quem é o camponês? "Eu conheci o camponês em Pernambuco, meados da década de 1950, e quando mais tarde, exilado no México, tive a oportunidade de estudá-lo. Aprendi que o camponês é um só em todos os lugares. Numa palavra, digo que é um ser telúrico". Seus pés são como raízes. Arraigadas a terra, medram com a força das árvores. Seus olhos funcionam como um compass: traçam um arco no horizonte, integrando-se com os céus e as montanhas. O camponês, observa Julião, é um exímio observador, mesmo do que não vê, mas sente. Sabe comunicar-se através de parábolas.

O vigor da música nordestina brasileira e, em especial, de Luiz Gonzaga, assenta nessa união entre artista e camponês, entre alegria e trabalho, entre criatividade e necessidade. Daí, o algodão vira "ouro branco" e canções como Juvina viram fontes de imagem e imaginação. Para evocar letras célebres, arrolo trechos de Xote das meninas e Cintura fina:

Mandacaru quando fulora na seca/

É um sinal que a chuva chega no sertão/

Toda menina que enjoa da boneca/

É sinal de que o amor já chegou no coração.

 

*

 

Vem cá cintura fina, cintura de pilão/

Cintura de menina, vem cá, meu coração.

Esses versos mostra a capacidade de associação livre entre o artista e o camponês. Integram-se fenômenos do âmbito da natureza e do trabalho a formas humanas de ser, como o adolescer de uma jovem rapariga. Talvez mesmo sem o saber, o sanfoneiro faz uma dupla relação: à medida que humaniza a natureza, naturaliza o homem.

A aridez do meio onde se plasmou tanto a música de um Luiz Gonzaga quanto a do versejador cearense Patativa do Assaré – o decantador de Boi fubá e vaca estrela – propiciou o aparecimento de uma poesia de cunho social, como nestas linhas de Vozes da seca:

Pois doutô dos vinte estados/

Temos oito sem chovê/

Veja bem quase a metade/

Do Brasil tá sem comê.

 

No clamor por uma vida digna, tornou-se célebre a saga Asa Branca e A volta de Asa Branca, composições clássicas do martírio sertanejo. Entretanto, como em toda ida, o poeta agoura a vinda no sinal de um pássaro. Em comunhão com a natureza, o músico é ave de arribação, em cujo coração palpitam a intuição e o pressentimento. Através de sua percepção altaneira, abre asas ao horizonte, descortina o olhar em direção ao porvir.

Por isso, não raro, o cantar de Luiz Gonzaga é povoado de acauãs, sabiás, assum pretos, ribaçãs e patativas:

 

Tu que andas pelo mundo, sabiá…

Por que tanto já voou, sabiá…

O que falam os passarinhos, sabiá…

Alivia a minha dor, sabiá…

 

*

 

Já faz três noites que pro Norte relampeia/

A asa branca ouvindo o ronco do trovão/

Já bateu asas e voltou pro meu sertão/

Ai, ai, eu vou'membora /

Vou cuidar da plantação.

 

Assim como em um verso de A volta d'asa branca, a alusão à dimensão mística e divina grassa em quase toda a sua obra musical. Na referência a essas crenças, nota-se um elo entre fome e religião. Nela o sobrenatural é a única maneira de explicar a carência material. A indigência é uma condição radical. Nela não há alternativa. O suporte de sobrevivência para os sertanejos é a luz da fé.

Em um carnaval dos anos 1990, uma então pequena escola de samba, a Paraíso do Tuiutí, louvou Luiz Gonzava, entoando palavras miraculosas de saudação:

Vem do céu uma chuva de prata/

Para atender à mata/

Em um clima emocional./

São lágrimas de uma sanfona branca/

Que mora no espaço sideral.

Tal crença, mais que crendice ou mistificação, encerra uma ambivalência, pois a religião pode servir tanto para obscurecer e alienar quanto para agregar e libertar. Seguindo as palavras do cineasta Glauber Rocha, em quem me fio e confio: "… a pobreza é a carga autodestrutiva máxima de cada homem e repercute psiquicamente de tal forma que este pobre se converte em um animal de duas cabeças: uma é fatalista e submissa à razão que o explora como escravo; a outra, na medida em que o pobre não pode explicar o absurdo de sua própria pobreza, é naturalmente mística".

A religião faz-se presente em tudo. A começar pelo nome. Nome, nume: lume numinoso. São Luís Gonzaga (1568-1591): religioso italiano e santo da Igreja Católica, considerado Patrono da Juventude. Já nosso Luiz Gonzaga, popularmente Gonzagão, veio ao mundo em 13 de dezembro, dia de santa Luzia, protetora das vistas, e por isso chamou-se Luiz; ganhou o segundo nome de Gonzaga para acompanhar o nome do santo; e, por fim, o sobrenomeNascimento, porque veio a terra em mês idêntico ao de Jesus Cristo.

Além disso, vale ressaltar que, para os habitantes de Exu, foi uma vidente quem profetizou seu sucesso. É que a ciência do povo, o folk-lore, desbarata a onipresença da causalidade, em favor da abertura ao inaudito e ao misterioso:

Meu nome é Luiz Gonzaga/

Não sei se sou fraco ou forte/

Só sei que graças a Deus/

Até pra nascer tiver sorte/

Pois nasci em Pernambuco/

Famoso Leão do Norte.

Em grande parte das composições do sanfoneiro, retrata-se o dia a dia do sertanejo, sem com um espírito bem-humorado e jocoso. Um sem número de toadas narram causos, desafios, histórias pitorescas, casamentos, festas, forrós, caçadas, conversas de animais, folias, tudo embalado ao som do xote, xaxado, baião, zambumba, que dão ao lúdico um lugar privilegiado. Merecem menção canções como Samarica parteira, Apologia ao jumento, Capim novo, United Statesof Piauí, Vem morena, Facilita, Paraíba masculina, Caruaru, São João na roça, Bandinha de fé e o pequeno idílio Riacho do navio.

Se, de acordo com Darcy Ribeiro, a antropologia estuda as paixões humanas, isto é, homem e as formas coletivas de ser, representar e estar no mundo, este texto não foi senão a tentativa de estudos de uma paixão: a música de Luiz Gonzaga, o rei do baião.

Edição Final: Guilherme Mazzeo

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.