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GV CULT - Criatividade e Cultura

Glauberianas (III): por uma estética da fome e do sonho

GvCult - Uol

14/05/2019 06h09

GLAUBER NA REDAÇÃO DO CORREIO BRAZILIENSE, EM 1977. FOTO: ARQUIVO CB/DA PRESS

Por: Bernardo Buarque de Hollanda

"Nós somos uma nação simples, sentimental,

uma nação sem gravata"

Gláuber Rocha

 

"Tanta violência, mas tanta ternura"

Mário Faustino

Há quem considere Glauber Rocha (1939-1981) o profeta da atualidade. Concordo. Mas prefiro situá-lo a partir de uma imagem: corisco. Corisco é raio, é luz, uma luz na escuridão, no caos. Contudo, em sentido figurativo, diz também hóspede inesperado e, portanto, acaso. Glauber Rocha pode ser da mesma forma uma espécie de Lua Cris às avessas, ou seja, um eclipse lunático que não traz mau agouro, como está gravado no folclore e na memória popular.

Mas não me interessa definir o que este cineasta baiano é; interessa-me, isto sim, saber o que ele produz, o que ele causa, qual é seu efeito, qual seu impacto. Neste sentido, a imagem também é válida. Se a faísca produz a luz, logo após ouve-se o trovão, o abalo, o som, o estampido, enfim, o transe. Terra em transe! Sertão vira mar, mar vira sertão. Deus é o diabo!

Todos os filmes glauberianos trazem incômodo, inquietação. O próprio cineasta atribuía a todos os seus filmes um sentido político. Todavia, eu também entrevejo um sentido poético, ou seja, vejo poesia pulsante seja no silêncio translúcido de uma imagem seja no alarido ruidoso de uma cena. Talvez Glauber não veja poesia em suas películas porque, como a protagonista de um dos seus filmes diz: "Poesia e política são demais para um homem só!".

A reflexão política que seus filmes encerram faz parte de uma cosmovisão do ponto brasileiro, imbuído de uma postura artística autêntica e independente. Assim sendo, o autor enfoca a religião, a fome, a música, a terra, a etnia, o folclore, em suma, todos os fundamentos que estão no cerne de uma cultura popular brasileira, com a elaboração que só a um artista compete. Digo artista, porque Glauber considerava este homem aquele que capta de maneira mais sensitiva e intuitiva o modo de ser de um povo. Não o trata formalmente através de números, mas se comunica pelo sentimento coletivo e pela projeção onírica.

Desta maneira, ele superou a dimensão presunçosa com que muitos intelectuais abordam a religiosidade popular: ultrapassou a perspectiva da alienação. Entende que a religião constitui o âmago do irracional e do místico. Se pode ser um fenômeno obnubilador da realidade, também é possível que seja um elemento de liberação e irrupção contra o qual a consciência dominadora torna-se incapaz de controlar. No filme Deus & o diabo na terra do sol (1964), o vaqueiro Manuel, personagem principal, mata o patrão que o explora e junta-se ao séquito do beato Sebastião, para depois unir-se ao capitão Corisco e ao cangaço.

Quando afirmo que Glauber pensa grande, isto se deve ao fato de que ela se preocupa não apenas com o Brasil, o que seria uma obtusidade ufanista, mas também com a América Latina. Lembre-se que Nuestra América, poema fundador composto pelo cubano José Martí, foi uma película que ambicionou dirigir. Quem lê o ensaio A estética da fome, lido num congresso em Gênova, no ano de 1965, compreende o meu ponto de vista. Para o cineasta de Vitória da Conquista, a fome é o centro vital da latinidade pós-colonial.

A fome é a nódoa que une todos os povos latino-americanos. Com base nesse aspecto histórico-material – e de igual modo espiritual – do subdesenvolvimento é que devemo-nos expressar ao mundo. Note-se como aqui a fome não é enquadrada pelas cifras ou pelo viés humanitário. A fome afeta o cerne da visão de mundo do colonizado, da maneira como se comporta com o colonizador. Destarte, se a indigência é nossa maior tragédia e danação, se está no centro da psicologia social dos povos da região, logo, constitui ela a genuína potencialidade, o fulcro criativo capaz de surpreender e assombrar o mundo civilizado.

Completar-se-ão, em 2020, 55 anos do ensaio A estética da fome, apresentada, como dito acima, na Itália. Curiosamente, sua publicação coincide com o aparecimento no Brasil das Rede Globo de Televisão (1965), na esteira do golpe civil-militar, empresa de telecomunicações que desenvolveu uma linguagem audiovisual diametralmente oposta àquela preconizada por Glauber. Se o cineasta baiano colocou um primeiro plano a fome radical, a irracionalidade da miséria e a violência da condição humana nos países do assim chamado Terceiro Mundo, a telenovela global nos dias de hoje exibe a luxúria, a ganância e a futilidade em cores platinadas. Esta estética televisiva dissemina valores que não se coadunam à realidade e reduz a vida e o amor à ambição, à traição e à competição individualista.

Via de regra nas telenovelas não há inovação pedagógica, há sempre luta pelo poder e pelo sexo, muito embora propale-se a ideia de que o cinema nacional é que é pornográfico. É consabido que o critério de escolha de uma atriz contemporânea não privilegia o talento na arte dramática ou a capacidade interpretativa de colocar-se humanamente no lugar do outro, mas seu rosto e corpo qual modelo publicitário. Modelo este estereotipado e exponenciado pela sociedade de consumo. A mulher, no mundo do panóptico eletrônico, corresponde a uma mera embalagem erótica. 

Conforme indiquei anteriormente, é possível fazer uma sociologia da linguagem, da indumentária ou do candomblé no universo glauberiano. O ritmo e a dança negra são uma pulsação imagética que não se contém em seus filmes, que insiste em se manifestar no seio da sociedade brasileira. O cineasta do interior baiano via nas raízes índias e africanas uma potência a ser desenvolvida enquanto mecanismo afirmativo da nacionalidade. Fiel à visão terceiro-mundista de sua época, a burguesia e a camadas abastadas representavam a torpe imitação do modo de vida das metrópoles do dito Primeiro Mundo europeu e estadunidense.

Já em seu primeiro longa-metragem, Barravento, de fins dos anos 1950, Glauber Rocha substitui o homem telúrico pelo homem litorâneo, na tentativa de coesão social e de integração cósmica de um povoado às margens do mar da Bahia: Iemanjá, orixá iorubano, realiza este elo. Mas sempre ao fundo uma cantiga melódica de capoeira e folclore nordestino é entoada. Da música erudita do maestro Heitor Villa-Lobos aos trovadores, aos menestréis e à literatura de cordel, todos os recursos sonoros permeiam a brasilidade em sua obra.

De volta à dimensão política da cinematografia de Glauber Rocha, deparamo-nos com dois filmes. Um no curta-metragem Maranhão 66; outro no longa Terra em transe, de 1967.

Cumpre dizer, a respeito do primeiro, que o cineasta procurava sintetizar a figura do político brasileiro a partir do contraponto entre o áudio e o visual. Se pelo som é possível escutar o diálogo de posse do sr. José Sarney ao governo daquele estado nordestino durante a ditadura militar, filmagem encomendada pelo político a Glauber nos primeiros anos do regime militar, pela imagem pode-se assistir ao abandono, ao flagelo e à precariedade da situação dos hospitais, que retratam o esquecimento da população. Através das ferramentas técnicas oferecidas pela linguagem visual e auditiva do cinema, Glauber desconstrói o discurso do poder, pondo a nu suas contradições e inconsistências.

Sobre Terra em transe, nos dias de hoje elevado à condição de marco do tropicalismo brasileiro do final dos anos 1960, é possível dizer que constitui um épico político, brotado do inconsciente coletivo da América Latina. O rei que trai seu povo, o intelectual que vive imerso na angústia da ambiguidade entre a teoria e a práxis, a província que faz as vezes de continente paradoxalmente ilhado, o tempo que não flui – tudo isso simboliza Eldorado, nascido do sonho fantasmagórico de riqueza e pilhagem dos primeiros conquistadores do Novo Mundo.

A cena inicial do filme é sideral: take aéreo, em panorâmica, com sol a resplandecer sobre o mar, cujo efeito é uma luz ofuscante. Cegueira! A derradeira cena do filme também: homem armado que, ensandecido, em meio aos versos do poeta piauiense Mário Faustino, morto precocemente em desastre de avião havia poucos anos (1962), descerra uma fileira de tiros, de maneira ininterrupta, aos céus. Imensidão!

Não é apenas em filmes notadamente políticos que podemos captar essa perspectiva. Segundo informação do cientista social Gilberto Vasconcellos: "O grande desafio estético do cinema glauberiano foi politizar o folclore. Por exemplo: o tema de O dragão da maldade contra o santo guerreiro é uma luta de camponês contra latifundiário". O próprio filme experimental Câncer, protagonizado pelo ator Antônio Pitanga, por mais reiterativo que seja, confirma o caráter político de Glauber: um mendigo transeunte, um marginal depauperado que, perambulando pelas favelas e ruas da cidade do Rio de Janeiro, não se cansa de vociferar em alto e bom som: "eu estou com fome! Eu Estou Com Fome!! EU ESTOU COM FOME!!!"

Não se pense, todavia, que Glauber é só Rocha… é também dor, fraqueza, desamparo. Não me sai da memória o relato comovido do antropólogo Darcy Ribeiro, contando que, no exílio, assistiu ao cineasta chorar um dia inteiro, estirado em uma cama, na cidade de Lima, Peru. Chorava, chorava, chorava… Glauber exclamava indignado: " – Darcy, tanta gente passando fome, como pode, Darcy, tanta gente jogada na rua, morrendo".

Em pleno terceiro milênio, quando intelectuais contentam-se com funções burocráticas ou com os apelos institucionais do poder oficial, seria de bom alvitre manter acesas essas palavras de Max Weber, ao final de seu ensaio A política como vocação: "Certamente, toda a experiência histórica confirma a verdade – que o homem não teria alcançado o possível se repetidas vezes não tivesse tentado o impossível". Incluo também estas sentenças de Friedrich Nietzsche de seu ditirâmbico Assim falou Zaratustra: "É preciso ser o caos para se gerar uma estrela. Somente do caos pode nascer uma estrela".

À guisa de encerramento, há de se recordar a cantiga de resistência final de Glauber Rocha e de Sérgio Ricardo, cantor da MPB, em Deus & o diabo na terra do sol:  "Se entrega, Corisco… – Eu não me entrego não, eu não me entrego, não. Eu não sou passarinho pra viver lá na prisão. Não me entrego a tenente, não me entrego a capitão, me entrego só na morte de parabélum na mão".

 Edição Final: Guilherme Mazzeo

 

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.