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GV CULT - Criatividade e Cultura

José Lins do Rego e o carnaval de Recife no romance: "O moleque Ricardo"

GvCult - Uol

19/03/2019 06h01

Carnaval do Recife (1948) por: "Pierre Verger".

Por: Bernardo Buarque de Hollanda e Regiane Matos

Introdução

O quarto romance do escritor José Lins do Rego, O moleque Ricardo (1935), tem sido considerado pela crítica literária como o primeiro livro do autor dedicado a abordar aspectos urbanos e políticos. Trata-se, para muitos, de um registro histórico-social da cidade de Recife no início do século XX.

Sem discordar dessa dimensão principal, queremos mostrar neste breve texto como, junto à esfera conflitiva da luta de classes, decorrente do processo de industrialização, e da disputa por poder, efeito dos antagonismos políticos que emularam a Primeira República (1889-1930), o autor dedica também parte substantiva do livro a descrever o ambiente festivo do carnaval recifense. Neste sentido, Lins do Rego retrata a dinâmica da cultura popular nordestina, com suas confraternizações, mas também com suas hierarquias e clivagens sociais, características da vida brasileira nas primeiras décadas do século XX.

Para lograr tal intento, é necessário de início uma contextualização pontual sobre a obra. Lembre-se que a produção literária do escritor nordestino abrange o total de 12 romances e 1 livro de memórias, assim disposta em ordem cronológica: O menino de engenho (1932), Doidinho (1933), Banguê (1934), O moleque Ricardo (1935), Usina (1936), Pureza (1937), Pedra bonita (1938), Riacho Doce (1939), Água-mãe (1941), Fogo morto (1943), Eurídice (1947), Cangaceiros (1953) e Meus verdes anos (1956).

Para este artigo, foram consultadas três edições da obra O moleque Ricardo: a de 1961 (6ª edição, publicação conjunta ao romance subsequente Usina); a de 1984 (18ª edição, lançada excepcionalmente pela editora Nova Fronteira); e a de 2011 (28ª e última edição publicada José Olympio até o presente momento).

Além disso, um dos autores acesso ao manuscrito original de O Moleque Ricardo, que está sob a guarda da Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB), localizada na cidade do Rio de Janeiro. O caderno faz parte do acervo do advogado e bibliófilo carioca Plínio Doyle Silva (1909-2000) e foi doado a ele pelo paulista José Olympio Pereira Filho (1902-1990), amigo de José Lins e proprietário da Livraria José Olympio, cuja editora homônima foi responsável por publicar todo o corpus romanesco do escritor.

A presença do manuscrito O moleque Ricardo, de José Lins do Rego, na Casa de Rui Barbosa, pode ser compreendida à luz do estreitamento da relação entre Plínio Doyle e José Olympio, ocorrida durante a década de 1960. Por razões profissionais e literárias, os dois ficaram cada vez mais próximos ao longo daquele decênio. Plínio, na condição de advogado, atuaria como sócio da editora José Olympio. Vale lembrar que os afamados Sabadoyles, saraus literários que ocorriam aos fins de semana na residência de Plínio no bairro de Ipanema, no Rio, também tiveram início nessa mesma década de 1960.

Ainda no campo de uma breve história editorial do manuscrito e da rede de sociabilidade em torno dele, vale ainda acrescentar a informação de que nos anos 1970 a Livraria José Olympio sairia da tradicional rua do Ouvidor, no centro carioca, e fixaria loja na rua Marquês de Olinda, no bairro de Botafogo, nas proximidades da Casa de Rui. O acervo de Plínio Doyle, depositado na FCRB, instituição da qual foi diretor, conserva cinco mensagens epistolares remetidas por José Olímpio, que vão de 9 de novembro de 1960 a 16 de outubro de 1984, dentre as quais figura carta que trata da entrada de Doyle como advogado da editora José Olympio.

Do trabalho ao lazer no espaço urbano: nivelamento e hierarquia social do carnaval

A dança, a festa e a música não são vistas de forma secundária e têm destaque expressivo no espaço urbano romanesco de O moleque Ricardo. O frevo, o maracatu e o carnaval, com seus blocos, cordões, ranchos, maracatus, caboclinhos e lança-perfumes, estão presentes ao longo da narrativa e constituem aquilo que a pesquisadora Yoshihiro Arai chamou de "mosaico folclórico". Por mosaico, a autora entende a convivência de diferentes tipos de desfiles ou de cortejos, com origens históricas e bases sociais diferentes, além de estilos próprios.

O livro dá ênfase à tal diversidade musical, realçando a performance corporal, a plasticidade e as cenas de extravasamento extraordinário daqueles festejos que exaltam os momentos de alegria coletiva do ser humano. O mundo lúdico do carnaval, ao mesmo tempo, não é visto pelos simples traços da espontaneidade. Ele demanda um elevado nível de organização e de competição, com a existência de líderes e de fortes relações de vizinhança comunitária.

Os blocos de rua de Recife e Olinda estimulam laços de união, ensejam o cultivo do rito e soldam a coesão grupal. Com os blocos estabelecem-se afinidades e identidades entre os moradores de uma mesma rua ou de um mesmo bairro. A diversão proporciona uma expectativa e um congraçamento entre as pessoas, o que não ocorre no cotidiano do trabalho. Em uma das inúmeras passagens ficcionais, o narrador coloca:

Há quatro anos no Recife, Ricardo não tivera conhecimento do que fosse mesmo carnaval. Nos outros anos ficava numa porta de sobrado, vendo passar o povo de pé no chão, no frevo, os automóveis com mulheres enfeitadas, caminhões cheios, o povo doido na rua. O moleque como tinha saído de casa, chegava, um pobre espectador da alegria de todo o mundo. Ele não sabia, não avaliava mesmo como se podia fazer aquelas coisas no meio da rua. Aqueles saltos, os gritos, as piruetas. Tudo lhe parecia impossível. Viu negros velhos, meninos de três anos, mulheres feias, bonitas, brancas, pretas, tudo no frenesi se servindo de um prazer que lhe escapava. Não havia branco e não havia preto quando a música de um clube passava assanhando tudo. As moças de dentro dos automóveis, os que iam a pé, os homens importantes e os iguais a ele, todos como se fossem de uma mesma casa. Todos se conheciam. A música era de todos. Gente cantando, gente de gravata e de pés no chão. Os maracatus roncando e o cheiro das negras suadas, dos lança-perfumes. Os cafés cheios de bêbados engraçados, de sujeitos querendo brigar com todo o mundo. As brigas, os pontapés, porque um atrevido pegara nos peitos de uma moça acompanhada. O povo ficava outro, inteiramente outro. De dia mesmo, nos trens carregados, nas portas das casas, por toda a parte a cara do povo era outra. A freguesia dos seus pães, o balaieiro, os homens da padaria, tudo mudava, melhorava a vida, subia de condição (1984, p. 124).

Todavia, ao contrário da imagem niveladora, temporária e suspensória das diferenças sociais, o livro salienta que também no carnaval a distinção entre ricos e pobres/entre setores privilegiados e desfavorecidos se demarca com clareza. Uma diferença bem visível no romance, por exemplo, diz respeito à ocupação dos espaços públicos. A elite desfila nos corsos – carros de luxo exclusivos – e frequenta os bailes à fantasia nos salões dos clubes, enquanto os pobres se divertem a pé e nas ruas durante o carnaval. Mesmo entre os festejos populares, com seu caráter temporário e cíclico, acentuam-se as diferenças internas nas zonas urbanas, tais como as verificadas entre as manifestações do carnaval e do maracatu.

Ao observar que "o músico e o poeta cheiravam a mangue da rua do Cisco" (1961, p. 91), José Lins do Rego relata:

Por perto da casa havia ensaio de um clube de Carnaval. A cantiga chegava para acalentar o sono de Florêncio. O povo da rua miserável cantava de noite. Perto da lama cantavam e dançavam. O carnaval vinha aí. Todo o ano, daquela rua saía o Paz e Amor com os seus homens e as suas mulheres numa alegria de doidos, saltando como bichos criados na fartura. Dois meses antes já se anunciava a música que exibiriam na cidade. O Paz e Amor esquecia os urubus, a catinga do curtume, os filhos magros, para cair no passo. O carnaval era para aquela gente uma libertação. Podiam passar fome, podiam aguentar o diabo da vida, mas no Carnaval se espedaçavam de brincar. Com candeeiro na frente, bandeira solta ao vento, saíam para fora dos seus mocambos fedorentos para sacudir o corpo na vadiação mais animal deste mundo. Mulheres magras andando de Olinda a Recife ao compasso do ritmo de suas danças. Ali na rua de Florêncio, a miséria não abria exceção para um só. Todos eram da mesma espécie de deserdados. Todos se socorriam dos caranguejos como do pão de cada dia, mas em janeiro, já se reuniam para ensaiar os seus cantos e os mexidos carnavalescos (2011, p. 116).

Mas mal chegavam na Helvétia, ouviram um roncar de porco gigante. Era uma coisa mais forte e maior que o barulho do carnaval. O maracatu do Leão Coroado entrava na Imperatriz abafando tudo. Os bombos, os instrumentos de xangô calavam tudo. O canto do maracatu era triste. Os negros se entristeciam com aqueles lamentos de prisioneiros, de algemados, de negros gemendo para Deus, rogando aos céus. O maracatu rompia a multidão como uma avalanche. O Paz e Amor se encolheu para deixar o bicho passar com a sua tristeza. As vozes das negras de lá eram umas vozes de igreja. O Leão Coroado entristecia o povo mas passava, ia-se embora. A canalha queria o passo, botar para fora todas as doenças na dança, beber e cantar, que isto de sofrer não era para agora (1961, p. 106).

 A ambivalência do retrato que se faz da musicalidade e da festividade carnavalescas é flagrante no romance. Isto chama a atenção inicialmente porque o crítico Virginius da Gama e Melo já apontara o desenvolvimento dramático de uma espécie de "sonoridade do silêncio" em Lins do Rego, mais expressiva que os próprios canários do moleque Ricardo (1980, p. 105 e 123). Ou seja, o escritor dava primazia ao visual ante o auditivo, com as projeções da consciência, os fluxos internos de memória e os traços sentimentais de seus personagens, sendo capaz de abstrair diálogos e interjeições.

Mas em O moleque Ricardo o quadro se faz ambivalente na tematização da música popular em virtude de outra razão. Por um lado, um vívido interesse se expressa nas dezenas de páginas consagradas à sociabilidade do carnaval e à sua atmosfera ruidosa. Observe-se, aliás, o detalhe de que a palavra "carnaval" é tão importante para o autor que vem sempre grafada em maiúscula na sua obra. Por outro lado, a ênfase no contraste entre conscientização político-econômica e alienação com os divertimentos urbanos se faz nítida, para não dizer reiterativa ou maniqueísta, em O moleque Ricardo:

Agora ninguém mais falava de revolução, do dr. Pestana, da autonomia do Estado. Só do Carnaval se falava, se discutia, se cuidava. E o bicho ia chegando com força. Os clubes, de noite, não deixavam as ruas, visitando os jornais, espalhando-se no passo com as orquestras que se rebentavam de entusiasmo. O povo cantava. Queria lá saber que Borba era um Leão do Norte, nem de Pestana, nem de Pernambuco? O povo dançava e era tudo quanto queria (2011, p. 165).

O trecho supracitado alude ao clube Paz e Amor, grêmio carnavalesco recifense, situado à Rua do Cisco, que passa a ser frequentado pelo protagonista principal. O caráter documental da ficção fica patente, por exemplo, em versos cantados nas ruas pelos componentes e foliões do Paz e Amor. Estes pertenciam à marcha "Borboleta não é ave" e, conforme informação do pesquisador musical José Ramos Tinhorão, no livro A música popular no romance brasileiro (2000), fora o compositor profissional Nelson Ferreira o responsável por torná-la conhecida em todo o país, por meio de gravação em disco realizado pela Casa Edison da cidade do Rio de Janeiro, em 1922.

Outro recurso estilístico de que Lins do Rego lança mão ao tratar do carnaval é a remissão interpolar ao universo do engenho da infância, de modo a contrastá-lo com o ambiente urbano. Ao relatar sua primeira passagem de Ricardo pelo carnaval de Recife, evoca e contrasta com as cenas carnavalescas do interior:

Era aquele o primeiro Carnaval em que Ricardo se metia. Passara os outros ali em Recife, de fora, fora de tudo, do povo, da música. No engenho se falava dos mascarados, mas ninguém deixava a enxada nos três dias. Eram dias como os outros. Pela estrada apareciam mascarados que todo mundo sabia quem eram. Vestiam-se de negra e estalavam os chicotes, procurando pegar os moleques, que corriam se mijando de medo para as saias das mães. Na casa-grande, às vezes, quando havia gente de fora, sacudiam água uns nos outros. E o coronel na calçada, rindo-se das raivas e dos sustos que faziam as negras com as bacias d'águas sacudidas com força. O Carnaval ali era só aquilo. Raramente vinha clube do Pilar dançar no engenho. Aí a alegria era grande. Seu Fausto maquinista era quem arranjava estas visitas. O velho não gostava por causa dos trabalhos que davam. A casa se enchia dum povão contente. Abriam a sala de visita e o clube fazia as piruetas com o baliza na frente. Festão para os meninos e os moleques. Acontecia pouco um sucesso daqueles. Quase sempre o Carnaval passava pelo Santa Rosa como num dia útil. E então, depois do casamento das filhas, o velho engenho nunca mais que abrira os seus salões para os Douradinhos do Pilar (2011, p. 181-182)

Reminiscências à parte, as festas das associações carnavalescas em Recife permitem também a Ricardo não só dividir seu tempo entre o trabalho na padaria e o lazer na noite recifense, mas igualmente descobrir o amor e o sexo. Ricardo tem as suas primeiras relações sexuais com mulheres que vem a conhecer nestas festividades. Entre elas, destacam-se a "provocante negra Isaura", que o convida ao frevo e ao Bloco do Espinheiro; a Guiomar, "mais clara que ele", "amor melado de luxúria" (2011, p. 126); e a "mulata" Odete, filha de Seu Genaro, presidente do Paz e Amor, conhecido por ser disciplinador.

À guisa de conclusão

No presente texto, procuramos dar atenção ao universo da festa popular, tal como apresentado por José Lins do Rego no romance em questão. Lado a lado com as desigualdades dos mundos do trabalho e das disputas pelo poder político local, pretendemos evidenciar de que modo o autor dedica parte considerável do romance à descrição das práticas de sociabilidade e lazer na cidade.

Mais precisamente, intentou-se iluminar de que forma ele confere atenção especial à ambiência festiva do carnaval e do frevo na capital de Pernambuco. Para além de uma visão romantizada do intelectual acerca da cultura popular, Lins do Rego frisa tanto os aspectos socializadores franqueados pela festa coletiva e pública quanto demarca as clivagens hierárquicas e econômicas do ambiente carnavalesco, que se supõe, à primeira vista, nivelador de distâncias e hierarquias sociais.

Ainda aqui, tencionamos sublinhar brevemente perspectivas do carnaval que podem se articular às ideias de Mikhail Bakhtin (1993) acerca da arte popular, desenvolvidas e adaptadas por sua vez por Roberto DaMatta (1990) ao analisar o Brasil dos anos 1970, para interpretar o fenômeno carnavalesco brasileiro sob o prisma da antropologia urbana, da estrutura social e do chamado triângulo ritual.

Frisamos que, em ambos os autores, predomina a noção de que o carnaval é um rito de inversão do mundo do trabalho, onde se suspendem temporariamente os papeis sociais e no qual a ordem é posta de ponta-cabeça. As cenas carnavalescas de O moleque Ricardo corroboram a visão da festa popular no espaço urbano como momento intervalar, em que a estrutura social e a hierarquia do trabalho são invertidas provisoriamente, mas não deixam de acentuar como, em seguida, ou mesmo durante a celebração, elas retornam com mais vigor, na cidade periférica, emergente e excludente de Recife de princípios do século XX.

Referências bibliográficas

ARAI, Yoshihiro. "O Carnaval do Recife e a Formação do Folclore Negro no Brasil". In: Senri Ethnological Reports, n. 1, 1994. Disponível em: http://doi.org/10.15021/00002332. Acesso em: 05 mar. 2019.

BAKTHIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1993.

DaMATTA, Roberto. Carnaval, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1990.

MELO, Virginius da Gama e. Estudos críticos. João Pessoa: Ed.UFPB, 1980.

REGO, José Lins do. O moleque Ricardo. 1961.

____. O moleque Ricardo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

____. O moleque Ricardo. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011.

TINHORÃO, José Ramos. "Os romances de ambiente pernambucano". In: A música popular no romance brasileiro. São Paulo: Editora 34, 2000, vol. 2.

Autores:

Bernardo Buarque

Professor da Escola de Ciências Sociais (FGV-CPDOC)

 

Regiane Matos

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História Política e Bens Culturais (PPHPBC-CPDOC)

 

Edição Final: Guilherme Mazzeo 

 

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.