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GV CULT - Criatividade e Cultura

O humanismo na história da Renascença

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20/11/2018 06h05

Por    Bernardo Buarque de Hollanda

"A ênfase no indivíduo e na individualidade resultou em diferentes pontos de vida acerca da representação da natureza humana."

Quem são os humanistas? Indivíduos do século XIV empenhados em modificar o padrão de estudos vigentes nas Universidades medievais (Coimbra, Oxford, Bolonha e Sorbone), dominadas pela Igreja, que se dedicava a estudar medicina, direito e teologia. Até então, preponderava uma visão estática, dogmática e hierárquica do mundo condizente com a Europa feudal.

Os estudos humanísticos estão articulados à reforma educacional: poesia, filosofia, matemática, retórica e história. Trata-se de aprendizagem e domínio perfeito das línguas clássicas (latim e grego), sendo seguido por árabe, hebraico e aramaico. Este estudo levou aos textos de autores da Antiguidade no original, sem a intermediação dos manuais canônicos medievais.

Com a inspiração na cultura antiga, emergiu o antropocentrismo, que consiste no estudo das ideias que antecederam o advento de Cristo – paganismo – , enquanto a Igreja considerava apenas os textos que sucederam a Era Cristã. Não eram ateus, mas cristãos desejosos de interpretar as mensagens do evangelho à luz de suas experiências mais originais. A pesquisa desses textos levou a uma exaltação dos valores individuais, nos feitos, na vontade e na ação humana. Descoberta de que também o homem é portador de energias criativas ilimitadas: ação, virtude e glória. A imitação dos antigos não significava volta, regresso e repetição das formas de vida, com a idealização de uma idade de ouro greco-romana, mas inspiração para um novo momento que seria realizador, empreendedor.

Petrarca foi um dos primeiros poetas inspirados nesses exemplos antigos. O desejo de ler os textos clássicos levou-o a preferir o latim clássico ao latim desgastado da Igreja. Os estudos de filologia e de linguagem levam os humanistas a estudar a história e as características da sociedade em que viviam aqueles homens das civilizações mais antigas. Da filologia passa-se a um interesse pela história e pela vida. Esse é um ponto de partida para despertar a curiosidade também pelas línguas faladas nas cidades, o que o leva a um interesse pelo mundo contemporâneo. As línguas nacionais passam a configurar os estados monárquicos unificados.

Faz-se assim o criticismo da cultura tradicional. Enquanto os humanistas se voltavam para a crítica filológica, para a crítica cultural, para a crítica histórica, tornando-se mais sensíveis às variações e às mudanças, os teólogos tradicionais não consideravam a mudança, pois o curso dos acontecimentos. O homem e a alma humana na terra optam entre o bem e o mal, que o levará ao Juízo Final, depois da vinda de Cristo, e destes a um regresso ao Paraíso Perdido. Enquanto estes se preocupavam com o espiritual e com o transcendente, exaltando os valores da piedade e da disciplina, os humanistas estudando as línguas, começaram a se interessar pelo homem, pelo meio social, pela natureza, acentuando um aqui e agora. O ser humano continha o divino dentro de si, sua força criativa, expansiva.

Se os humanistas foram de início um grupo de eruditos seletos no corpo fechado das universidades, suas ideias acerca dos novos valores e comportamentos começaram a se expandir nas cidades, entre professores e estudantes, clérigos e cientistas, poetas e artistas. Um certo inconformismo se disseminou e mesmo sem ser bem visto pela tradição religiosa, esses homens progressistas atuaram no seio da Igreja, em torno do papa, que na época atuavam como um Estado. Espécie de conselheiros. Esses pensadores e homens originais passaram a se associar aos papas, aos príncipes, às universidades, às famílias burguesas, como forma de buscar proteção e tutela.   

Em contrapartida, vicejam as perseguições aos humanistas. A liberdade de pensamento e a postura independente também resultaram em drásticos acontecimentos: o exílio de Dante e Maquiavel de Florença; a tortura e a prisão de Campanella e de Galileu, Giordano Bruno foi à fogueira da Inquisição; Camões e Michelangelo morreram à míngua, Da Vinci enlouqueceu.

A perseguição e a insegurança por sua vez criaram uma rede e um sistema de solidariedade entre esses estudiosos, que se correspondiam por meio de cartas e recebiam-se uns aos outros de maneira hospitaleira, de modo que isto possibilitou também que as ideias que floresceram inicialmente nos limites das universidades e das cidades italianas se espalhassem por boa parte da Europa.

A diversidade torna-se, pois, a pedra de toque dos humanistas. A universalidade e a rede internacional criada por estes humanistas não corresponderam a um programa único, muito menos unificado. A ênfase no indivíduo e na individualidade resultou em diferentes pontos de vida acerca da representação da natureza humana. Isto porque a filiação à tradição antiga era distinta (Platão e Aristóteles), assim como a temática (natureza, cosmo, história) e a utilidade prática (política, científica, religiosa).

Uma das escolas humanísticas mais poderosas teve como berço a cidade de Florença, onde se criou a Academia inspirada em Platão. O platonismo consistiu na exaltação de um espiritualismo que se ligava à produção artística e cultural. Nicolau de Cusa, Pico Della Mirandola e Ficino faziam de suas obras uma espécie de filosofia da beleza, em que a manifestação do Divino e a adoração a Deus se fazia por intermédio do belo, da arte e do sublime. Para isto, não bastava a imitação técnica da natureza, mas a busca da perfeição absoluta, que só se dava com o conhecimento das leis naturais que possibilitavam tal perfeição. Para se chegar à harmonia, era necessário estudar matemática, a ciência da exatidão.

Em paralelo à Academia de Florença, que se voltava ao espiritual e ao artístico, havia a Escola aristotélica de Pádua, com intelectuais ligados à república de Veneza, região, portanto, com menos influência da Igreja, desenvolveram estudos práticos sobre medicina, anatomia e vários fenômenos naturais com menos preocupação teológica. O Aristóteles de Pádua não era o mesmo do aristotelismo de Tomás de Aquino, muito famoso nas universidades europeias, com suas classificações de história natural. Eles se associavam ao Aristóteles estudado por Averrois, um comentador árabe. Ali floresceram Copérnico e Galileu. Eles romperam com a ideia de milagre, de imortalidade e de criação, defendendo a supremacia da razão.

Se não podemos ainda falar em um conhecimento científico, os questionamentos e as especulações teóricas logo passam a conviver com conhecimentos práticos e instrumentais. Na astronomia, de Copérnico a Galileu e a Kepler; na dissecação de cadáveres que permitiu as pesquisas anatômicas e que conduziram ao estudo da circulação sanguínea, mineralogia e hidráulica e arquitetura; no rompimento com as velhas autoridades e com os dogmas medievais; na avidez por conhecimento, que correspondia à avidez por poder e lucro.

Edição      Enrique Shiguematu

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Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.