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GV CULT - Criatividade e Cultura

Historiografia da Revolução Industrial na Europa

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16/10/2018 06h57

Por    Bernardo Buarque de Hollanda

" A destruição dos antigos modos de vida liberou as necessidades e produziu o consumidor moderno' – Pintura de August von Wille

Um dos primeiros livros do século XX a tratar das origens do processo industrial é o hoje clássico "A Revolução Industrial no século XVIII", de 1905, escrita por Paul Mantoux. Segundo o historiador inglês, o significado da revolução industrial na história da humanidade só é equiparável à invenção da agricultura, da escrita e da metalurgia na Pré-história e na Antiguidade, com as suas profundas transformações desencadeadas em pouquíssimo tempo, trazendo a sensação de uma aceleração e sugerindo metáforas naturais como explosão, vulcão, erupção, enchente, entre outras.

Em versão hoje consensual na historiografia, este processo industrial foi deflagrado nas ilhas britânicas, mormente na segunda metade do século XVIII. Ao contrário do império espanhol no século XVI, que passou a depender apenas do ouro e da prata provenientes das suas possessões americanas, tornando-se vulnerável à oscilação do valor dos metais no mercado europeu, a Inglaterra se baseou em uma solidez agrícola.

Esta lhe permitiu um desenvolvimento interno e uma prosperidade econômica, mesmo após a perda de colônias importantíssimas como os EUA, que declararam independência em 1776. Neste mesmo ano, Adam Smith publica "A Riqueza das Nações", onde descola o valor da riqueza da terra, como faziam os fisiocratas (Quesnay, Mirabeau, Turgot), para a produtividade sem as amarras do Estado e tornava célebre a formulação de uma inclinação natural humana para "comerciar, permutar e trocar".

Mantoux, em sua obra clássica, associa a Revolução Industrial à combinação entre a solidez agrícola inglesa e a prosperidade comercial. Neste sentido, a revolução industrial não precisou de uma revolução política como a Francesa, pois seu antigo regime econômico vai fazer a agricultura triunfar por si própria, favorecida é claro pelas concepções de Locke acerca da propriedade privada e pela Revolução Gloriosa já pavimentada por Cromwell no final do século XVII.

Ainda segundo Mantoux, a Inglaterra até 1750 é uma ilha pontilhada de inúmeras aldeias, paróquias, condados, comarcas, vilas e pequenos burgos. O homem encontra-se disperso, atomizado, por essas diversas regiões. A imagem que prevalece da Inglaterra ainda é rural: vastas extensões de pastagem, rebanho de ovelhas e de carneiros a fornecer a principal matéria-prima para as famílias, com a extração da lã e, depois, do cultivo do algodão.

A produção se dá em nível rudimentar e familiar, a economia serve à subsistência da casa (oikos), mediante uma divisão social do trabalho do fiador que pisa, fia e carda. Pouco a pouco, juntam-se os agregados familiares e os operários. O trabalho varia em conformidade com as estações do ano e com os ciclos da natureza, em uma relação temporal e espacial anterior à intensificação da disciplinarização do trabalho industrial, que será explorada pelo historiador E. P. Thompson. Vale dizer que o tear pouco mudara desde a Idade Média, cumprindo as funções de tosar, pisar, cardar, fiar. Os moinhos d'água compõem a paisagem natural, vindo a constituir a principal energia produtiva de até então: a força hidráulica.

A cadeia produtiva, hegemônica durante séculos, compreende diversas etapas: o produto da lã caseira é entregue inacabado a um tecelão, que dá um acabamento em seu tear à mercadoria, vendendo-a ao comércio local. A compra e a venda do produto são repassadas a um mercador que se incumbe de levá-lo às feiras, às vilas e aos burgos. Este o repassa a um comerciante, ou a um burguês, capaz de alojá-lo e de oferecê-lo à venda em forma de roupa, calçado, pano, seda, flanela e outras vestimentas em cidades como Manchester e Glasgow.

O sistema de produção, com a organização, a circulação e a distribuição das mercadorias, vai evoluir para uma especialização crescente e confere um poder cada vez maior às figuras intermediárias, ou seja, mercadores e burgueses, o que compromete a independência e autossuficiência camponesa.

Entre os historiadores franceses, Henri Sée e Jean Baecheler também tentaram descrever as origens do capitalismo na Europa. Assim como Mantoux, Baecheler julga este sistema econômico com base em transformações históricas por que passou a humanidade. Seriam três as mutações maiores: a aparição do sistema da cidade grega; a queda do Império Romano ocidental e as origens do sistema capitalista.

Para explicar as razões da aparição do capitalismo no Ocidente, o autor encadeia as seguintes proposições: 1) o caráter específico do capitalismo é a procura privilegiada pela eficácia econômica; 2) a condição primeira da maximização da eficácia econômica é a liberação da sociedade civil em relação ao Estado; 3) esta condição é possível na medida em que uma atmosfera cultural se divide em várias unidades políticas soberanas; 4) para que essas virtualidades tenham todas as suas consequências, é necessário também que o sistema de valores se modifique em relação aos valores religiosos, militares e políticos e que suas necessidades sejam liberadas.

Só o Ocidente conheceu uma evolução que preencheu todas essas condições – a ordem feudal saída da decadência das províncias ocidentais do Império Romano ignorava as trocas; quando estas apareceram, produziu-se um ser original: o burguês, com taxas econômicas e sem legitimidade. A ausência de uma ordem política europeia levou à anarquia do mercado e à impossibilidade de criar uma ordem econômica. A destruição dos antigos modos de vida liberou as necessidades e produziu o consumidor moderno. Para o autor, o mesmo raciocínio permite explicar por que a mutação industrial ocorreu na Inglaterra do fim do século XVIII. Até o presente, contenta-se com certas particularidades do fenômeno, como, por exemplo, o crescimento da demanda de algodão e geração de um aumento do tecido. Donde a adoção do trabalho de tecer. E assim por diante.

A hipótese de Baechler é a de que o sistema pluralista inglês se coloca em definitivo no século XVIII. Neste momento, a Europa alcança, após séculos de guerras internas e externas, uma estabilidade política, com a unificação dos Estados e uma administração mais eficaz. O espírito científico faz um progresso decisivo na Inglaterra a partir de Newton e a elite inglesa se ocupa da economia. Isto mostra que o avanço inglês não foi um casual. Além disto, a conjuntura do sistema europeu era favorável à eclosão do sistema industrial. Desta maneira não houve nenhum sério obstáculo para se estender o processo industrial à França, aos Países Baixos, à Bélgica, à Alemanha, à Itália do Norte e à Boêmia. Se o século XVIII realiza pela primeira vez este conjunto de condições colocadas em seu raciocínio, é necessário remontar ao século XI para entender a gênese progressiva dessas condições.  

De volta à historiografia inglesa, desta vez àquela de viés marxista, saída do Pós-Segunda Guerra, Hobsbawm publica em 1959 a sua súmula do que denomina "Era das Revoluções". Nela, começa por analisar em que medida a explosão revolucionária, ocorrida em meados do século XVIII, se deu graças a uma acumulação de transformações que se manifestaram em especial na década de 1780. Esta significou a retirada de todas as amarras para a produção, com a multiplicação de homens, mercadorias e serviços.

Ao explicar as razões para a sua eclosão nas ilhas britânicas, Hobsbawm aponta para a realidade escravocrata das Américas, para a colonização da Ásia e para o fechamento de seus antigos impérios do extremo oriente a qualquer ocidentalização, para a pulverização em pequenos principados do leste europeu, ainda muito próximo dos mecanismos servis do feudalismo, além de servir a Europa com seus alimentos, assim como a Europa latina, Espanha e Itália.

Hobsbawm trata então de circunscrever uma história regional, a do noroeste da Europa, a do eixo franco-britânico, que vai protagonizar esse acontecimento decisivo para a história do mundo, graças à força de seu impacto internacional após a dupla revolução. As guerras, como a Guerra dos Sete Anos, opõem duas potências que querem tomar a frente no mesmo processo de expansão europeia. Esta propagação depende da compreensão dos aspectos demográficos, técnicos e estruturais na região inglesa, como a construção do primeiro sistema fabril em Lancashire.

Embora a revolução industrial remeta à cidade e à fábrica, ela se encontra, conforme também defendeu Mantoux, em continuidade com as transformações rurais. A revolução industrial foi então um desdobramento evolutivo das relações agrárias e das instituições políticas (monarquia constitucional), nas Ilhas Britânicas. Ela permite a passagem do sistema doméstico de produção ao sistema mecanizado, com a especialização dos processos e funções.

O camponês típico dessa época é o servo, que realiza trabalhos forçados na fazenda do senhor, um nobre proprietário de vastas extensões de terra. Uma boa parte da Europa rural ocidental, entretanto, tinha abandonado sua condição servil e entrado em um sistema em que o camponês era o lavrador típico, com pequenos e médios camponeses vivendo não como arrendatários, mas como produtores mais ou menos autossuficientes. A Inglaterra conseguiu dar origem a uma classe de empresários agrícolas, os fazendeiros, e a um enorme proletariado rural.

A questão de Hobsbawm está em saber por que a riqueza, até então assentada na terra e na propriedade da terra, vai-se deslocar das amarras rurais e vai se voltar para uma produção baseada na mercadoria, na manufatura. A posse da terra conferia distinção – ser nobre era ter terras – e privilégios. Se até então se tinha um modo de produção local que abastecia as regiões circunvizinhas e próximas, observa-se em seguida a passagem para a articulação de um sistema interligado, voltado exclusivamente para o abastecimento e para o provimento das populações que habitam as cidades. A grande força do capitalismo é criar uma cadeia de produção entre o rural e o urbano, de modo que o que antes era isolamento e autonomia torna-se, pouco a pouco, ligação e interdependência.

Da mesma maneira que os historiadores supracitados, Hobsbawm entende que a revolução industrial está entre os acontecimentos de maior magnitude em termos históricos, equiparável na história da humanidade à agricultura e às cidades. Ela ocorreu na Grã-Bretanha e teve equivalentes entre Portugal e Rússia com os servidores das monarquias iluminadas da Europa. Mas estas foram muito pontuais, sem o alcance internacional dos complexos britânicos.

Segundo o renomado historiador, a revolução industrial não deve ser atribuída a qualquer superioridade inglesa em termos tecnológicos e científicos, acadêmicos e escolares. A França e a Escócia possuíam instituições e inventos mais adiantados, mas a novidade é que a Inglaterra passou a apostar em seu exclusivismo na produção econômica.

A revolução industrial foi feita com base no conhecimento técnico ao alcance de artesãos, carpinteiros, moleiros e serralheiros, acumulado por gerações de trabalhadores ingleses. Mesmo o invento técnico maior – a máquina a vapor rotativa, do escocês James Watt (1784) – se fez com base nas máquinas já existentes nas minas.

As condições econômicas, políticas e sociais já estavam sendo preparadas para a revolução industrial. Um espírito comercial já permeava o ambiente agrário, de modo que já não se podia falar em campesinato na Grã-Bretanha. A agricultura se dirigia para o mercado e as manufaturas circulavam no interior. Três funções fundamentais se verificavam no campo: o aumento da produção para atender a uma população não-rural; o excedente populacional escoando para as cidades; o acúmulo de capital para a modernização da economia. Concomitante a isto, ocorreu a construção de uma frota mercante e de uma malha ferroviária, o que evidencia a articulação entra a economia e a política no caso inglês.

Embora o século XVIII tenha sido marcado pela prosperidade econômica, a revolução industrial pode ser explicada menos em função de tal conjuntura e mais como a implantação de um sistema fabril mecanizado, com produção crescente e em custo decrescente, capaz de não depender da demanda e, ao invés, de criar o próprio mercado. As indústrias de objetos domésticos de pequeno porte cresceram, mas continuaram dependentes da demanda. A questão não é, pois, a expansão da produção, mas a da escala da produtividade.

Ainda segundo Hobsbawm, a revolução industrial resulta de um acúmulo de decisões de empresários, que se orientavam pelo princípio da compra no mercado mais barato e da venda no mercado mais caro. Eles buscavam recompensas excepcionais, com inovações simples e baratas, e mercado mundial com monopólio de uma única nação produtora.

O crescimento industrial podia ser obtido em certas áreas, como a têxtil, em todos os países já existentes, onde a expansão era mais viável. Havia itens, todavia, em que apenas a Grã-Bretanha se destacava, tornando-se modelo a ser imitado por outros países. Os inventos técnicos e a maquinaria, como a algodoeira, espalharam-se assim pela Europa e pela América. A Grã-Bretanha não dispunha de tais máquinas, mas possuía economia e política sólida para a conquista de mercados, após vencerem seu principal rival, a França.

De acordo com Hobsbawm, a indústria algodoeira e lanífera da Inglaterra relacionava-se com o comércio da Companhia das Índias Orientais, na tentativa de ampliação do mercado ultramarino. Variando segundo taxas de exportação e importação, a indústria de algodão estava atrelada ao comércio colonial. Na Grã-Bretanha, três portos coloniais se destacavam: Bristol, Glasgow e Liverpool, sendo este ainda um centro de comércio de escravos. Algodão e escravidão andavam, pois, pari passu.

Os escravos africanos eram comprados com os produtos de algodão indianos, enquanto a região de Lancashire veio a alimentar a escravidão sulista nos Estados Unidos, com sua demanda por matéria-prima. A revolução industrial pode ser descrita, em termos de venda, como o triunfo do mercado exportador sobre o doméstico. Foram a América, a África e a Ásia que sustentaram as fábricas britânicas.

A dependência internacional dos produtos manufaturados britânicos foi especialmente importante em duas regiões: a América Latina e a Índia. A primeira, desde a independência política de Portugal e Espanha, não parou de crescer, enquanto a segunda, tradicionalmente exportadora de matéria-prima, passou a importar em maior quantidade, invertendo um quadro histórico. Um dos aspectos que favoreceu a revolução industrial foi a possibilidade de empresários fazerem seus negócios com um investimento relativamente modesto. A conquista de novos mercados, somada à inflação de preços, permitia tal condição.

A relação da indústria algodoeira com os métodos de trabalho escravista potencializou sua expansão. A escassez de mão-de-obra barata e eficiente levou à sua mecanização, no setor da fiação. Durante o século XVIII, a fiação mecanizada foi antecedida pela expansão do sistema doméstico, onde as matérias-primas eram trabalhadas em casa, com vistas a atender aos mercadores, prestes a se tornarem patrões. Com a mecanização da fiação, os teares manuais foram desaparecendo.

Edição      Enrique Shiguematu

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Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

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O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.