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GV CULT - Criatividade e Cultura

A trajetória jornalístico-literária de José Lins do Rego (II)

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10/07/2018 06h46

Por    Bernardo Buarque de Hollanda

"…o então governador da Paraíba, José Américo, é constantemente citado e elogiado por José Lins."

A trajetória apresentada na primeira parte deste texto permite situar a inserção de José Lins do Rego na cidade do Rio de Janeiro, a partir de suas atividades como cronista em jornais cariocas. Como se sabe, o desenvolvimento histórico da imprensa no século XIX foi fundamental para a criação de um espaço de visibilidade em torno de escritores, que tinham os jornais e as revistas como arena pública, local em que se travavam esgrimas de ideias e duelos de posição. Podemos citar inúmeros relatos, desde os elencados em Vida literária: 1900, de Brito Broca, até estudos acadêmicos, como os de Roberto Ventura, Estilo tropical, ou Literatura e missão, de Nicolau Sevcenko, para mencionar apenas os mais famosos.  

Em estritos termos literários, os jornais publicavam não apenas romances, como diversos outros gêneros. Caberia citar, a título de exemplo, os romances-folhetins, transladados da França para o Brasil no Oitocentos. Várias de nossas obras ficcionais consagradas, hoje consideradas clássicas, nasceram dessa forma, tais como José de Alencar, Manuel Antônio de Almeida e Joaquim Manoel de Macedo. Isto se estendeu até princípios do século XX, com os romances de Lima Barreto, publicados também em jornais.

É Marlyse Meyer, professora da Unicamp, quem mostra como a crônica no século XX descende dos folhetins oitocentistas franceses, aclimatando-se com grande sucesso no Brasil a partir dos anos 1930. Segundo Antônio Cândido, a crônica constituiu um verdadeiro gênero nacional. Sua versão mais bem-acabada do ponto de vista literário é O conde e o passarinho, livro de Rubem Braga, que reúne suas crônicas em 1936. A receptividade deste gênero pode ser confirmada se constatamos até hoje em uma linhagem de autores, que engloba um Fernando Sabino, um Zuenir Ventura e um Luís Fernando Veríssimo.

Do ponto de vista jornalístico, existem críticos de costumes que remontam ao período da belle-époque carioca, quando a cidade tinha então com seus quase 800 mil habitantes, na virada do século XIX para o século XX. Em período de agudas transformações, Luís Edmundo descreve o Rio de Janeiro através dos diversos logradouros e de seus tipos populares. Na modernidade em vias de construção, a crônica torna-se um testemunho da vida local, seja do que morre seja do que nasce, filtro através do qual se revela sua paisagem social, cultural e humana.

A Luís Edmundo se agrega Paulo Barreto, o famoso João do Rio, artífice do gênero como reportagem, capaz de cartografar e, em muitos casos, de etnografar a vida urbana e a plena vertigem de suas mudanças, que no Rio de Janeiro se materializam na Reforma urbanística de Pereira Passos. Conforme mostra a antropóloga Júlia O'Donnell em sua dissertação de mestrado, a cidade moderna se dá a conhecer em suas regiões e em seus aspectos mais obscuros, como faz João do Rio na obra A alma encantadora das ruas, autor diversas vezes citado por José Lins do Rego. Se a vida literária se estabelece nos círculos de sociabilidade recém-instituídos, como os cafés e salões, a matéria para as reportagens é buscada pelo cronista na flânerie das ruas, como fizera o poeta Baudelaire na Paris do Segundo Império, com a invenção do gênero da crônica-reportagem.

José Lins do Rego vai ser um escritor que acolhe a crônica em seu sentido lato e polimórfico. Isto é, um gênero que abriga e franqueia uma quase total liberdade narrativa, em termos de experimentação temática e estilística. Suas crônicas variam de tamanho, são curtas e longas, são diretas ou são impessoais, transcrevem cartas de leitores. Assim, suas crônicas são um verdadeiro pot-pourri, ou um melting-pot, onde escreve sobre os mais diversos aspectos: política, agricultura, seca, livros, personalidades nacionais e estrangeiras, artistas, cientistas, exposições, viagens ao exterior, crítica de filmes, etc.

É o sentido dialógico da crônica, isto é, o da sua construção em proximidade com o leitor, em uma dicção que se aproxima do tom coloquial da fala, um fator muito importante. Embora fosse um romancista popular em termos de vendagem, foi a crônica quem lhe deu grande popularidade na capital da República, recebendo cartas, telefonemas e sendo reconhecido ao caminhar na rua. Isto concretizava um ideal modernista de aproximação e de comunicação com o povo, de contato diário através de uma linguagem oral, cujo tom de conversa era típico da crônica. É justamente a sua limitação, que o define como efêmero e menor, que no modernismo passa a se caracterizar como virtude.

É nesse sentido que podemos entender o título das colunas de José Lins do Rego nos jornais do Rio de Janeiro: "Conversa de Lotação", "Esporte e vida", "Pessoas, homens e coisas".

Para além dos ideais presentes no conteúdo das crônicas, é importante entender o momento de inserção de José Lins no campo jornalístico. O pós-Segunda Guerra marcou profundas sociais, com o incremento da industrialização e da formação inicial de uma indústria cultural, potencializada pelo advento da televisão. No âmbito da imprensa, as mudanças repercutiram através das transformações gráficas, editoriais e comerciais dos periódicos brasileiros, com a passagem de um "jornalismo literário" para outro de tipo "empresarial". A importação de máquinas de última geração, favorecida pelas diretrizes econômicas do governo Dutra, impulsionou o mercado jornalístico, com o aparecimento de empresários dispostos a investir em novos jornais, o que ampliou a concorrência.

Em algumas situações, essa competição dos jornais repercutiu em um extremado protagonismo político acentuado. Foi o que ocorreu com a Tribuna da Imprensa, criada em 1949 por Carlos Lacerda, e com o Última Hora, de Samuel Wainer, de 1951, que constituirá o braço direito do segundo governo Vargas, cujo desfecho dramático se deveu em boa parte a este aspecto interventivo mais direto do jornalismo na política.

Dentre os novos periódicos, mencione-se ainda o jornal O Dia, fundado em 1951 por Chagas Freitas, e a Revista Manchete, por Adolfo Bloch em 1952, e que tem por base congêneres estrangeiras, como a americana Life e a francesa Paris-Match. A parte visual passou a ser mais explorada, com fotos coloridas estampadas nas capas.  

Entre os jornais já existentes, um processo de reforma editorial também vai ser efetuado, até mesmo para fazer frente ao aparecimento de concorrentes. Um deles é o Jornal do Brasil, criado logo depois da proclamação da República. O JB vai assistir a transformações de forma e conteúdo, por iniciativa de sua proprietária, a condessa Pereira Carneiro, que em viagem aos Estados Unidos compra novos equipamentos gráficos para o jornal. A viagem também proporciona a atualização com as tendências do new jornalismo norte-americano. Se a objetividade do lead viera através do Diário de Notícias, é o JB responsável pela introdução da regra dos cinco Hs e do um H: onde, quando, quem, o quê, por quê e como.

A reformulação compreendeu também diagramações diferentes e a criação de encartes, como o Suplemento Dominical, o Caderno B e o Caderno C. Para isto, novos editores e jornalistas entraram em cena, como Reinaldo Jardim, Alberto Dines, Jânio de Freitas e Odilo Costa Filho, entre outros que se tornavam cada vez mais profissionalizados.

Dentro deste campo, O Globo não é um jornal nem antigo nem novato. É fundado por Irineu Marinho em 1925, que por sua vez já dirigia A Noite desde 1910. Um ano depois de criar O Globo, Irineu falece e o jornal passa a ser dirigido pelo filho, Roberto Marinho.

José Lins do Rego, amigo de Roberto Marinho, a quem dedica um de seus livros de ensaio, Homens, seres e coisas, começa a colaborar no jornal em 1943. Vai escrever com regularidade durante quinze anos consecutivos, até o seu falecimento. Na década de 1950, além da família Marinho, O Globo tem na equipe de redação Herbert Moses, seu tesoureiro. Este era presidente da Associação Brasileira de Imprensa e já pertencia aos quadros de A Noite. Outro nome importante era José Bastos Padilha, diretor-gerente, que nos anos 1930 fora presidente do Flamengo e, portanto, figura próxima a José Lins e a Mário Filho.

Se não teve o protagonismo de a Tribuna da Imprensa ou do Última Hora no processo político dos anos 1950, fica evidente a posição anti-varguista de O Globo no início da década. Com o suicídio de Vargas, convém lembrar que sua sede e seus caminhões de entrega foram apedrejados. O Globo também não chegou a ser protagonista das reformas de diagramação em curso, adequando-se a elas paulatinamente. Era de todo modo um jornal influente, tinha três cadernos principais, com um total de 28 páginas.   

Ademais, o periódico contava com um expressivo número de colunas, contemplando um variado leque de informações. O noticiário referente à política nacional predominava, com o retrato do jogo político dos principais partidos, quais sejam, UDN, PTB e PSD. Havia também um considerável espaço para notícias que exploravam a Guerra Fria, sobretudo um certo exotismo quanto aos países da Cortina de Ferro, como A morte vem do Kremlin.

As notícias referentes à cidade também tinham um peso grande nas manchetes e nas reportagens cotidianas. Colunas como "A batalha do Rio", "Dramas e comédias da cidade", "A serviço da cidade" e "Os que estão à margem da vida" exploravam problemas de trânsito, violência e pobreza na cidade, com a abertura de canal para que os leitores-cidadãos se expressassem.

Vista em série, e com o distanciamento do tempo, a leitura do jornal passa a sensação de uma cidade à beira da exaustão, em meio aos caos urbanos. As favelas cresciam, o subúrbio se convulsionava com os acidentes de trem, a sujeira e a poluição se espalhavam, o tráfego era descrito como uma balbúrdia de bondes, carros, ônibus, táxis e lotações.

É como se o projeto reformador civilizado da belle-époque já não mostrasse mais sinais de esperança, ainda que um ou outro prefeito ou interventor anunciasse medidas inspiradas em cidades norte-americanas, como a anunciada pelo prefeito João Carlos Vital, inspirada no plano de limpeza urbana da prefeitura da Filadélfia (EUA). Seria preciso esperar um projeto mirabolante como Brasília para que, do zero, se renovassem as esperanças ordenadoras modernistas…

As seções científicas e culturais, assim como artísticas e esportivas, também tinham considerável espaço, como se pode depreender do título das colunas. Uma incipiente atenção ao turismo, com reportagens sobre países como a França, pode ser percebida. Dentre os principais colunistas que colaboravam regularmente com José Lins do Rego, ressaltem-se os seguintes pares: Otelo, Antônio Olinto, Henrique Pongetti, Pedro Dantas, Thiago de Melo, Gustavo Doria, João Lyra Filho e Geraldo Romualdo da Silva.

Uma das descobertas feitas a partir da leitura de Conversa de Lotação é a centralidade da figura de José Américo de Almeida para José Lins. Pode-se dizer que o tão decantado relacionamento de mestre-discípulo entre José Lins e Gilberto Freyre aparece pouquíssimo nas crônicas de O Globo. Há uma análise que José Lins faz de Aventura e rotina, livro lançado por Freyre em 1952. O questionamento pode ainda ser ampliado pelo fato de que tradicionalmente diz-se que Menino de engenho é a versão literária de Casa-Grande & senzala.

Ora, tal versão pode ser questionada pelo simples fato de que a novela de José Lins é publicada em 1932, enquanto a obra sociológica de Freyre aparece um ano depois. Um mero cotejo de datas é suficiente para ao menos pôr em dúvida a relação entre criatura e criador. Como a criatura teria surgido antes do criador, em um convívio que não durou mais de um ano contínuo? É claro que a influência de Freyre remonta aos anos 1920 e não divirjo que ela é forte e indubitável. Quero somente mostrar como exemplos como este, extraídos da leitura das crônicas, podem pôr em questão certos dados cristalizados e canonizados pela fortuna crítica.    

Cumpre observar que o então governador da Paraíba, José Américo, é constantemente citado e elogiado por José Lins. Amigos desde os 17 anos de idade, os dois se acompanham desde pelo menos 1923, quando José Américo lança A Paraíba e seus problemas. Destarte, a amizade se estende por afinidades eletivas na política e na literatura. Em 1928, José Américo reaparece com A bagaceira, marco do romance social nordestino.

Neste breve bosquejo de trajetória, que aqui se encerra, este é apenas um exemplo a ser desenvolvido. No limite, creio que ele justifica a necessidade de ler os textos de José Lins do Rego em seu suporte original – os jornais do Rio – e em valorizar justamente aquilo que seus críticos e amigos não selecionaram como dignos de publicação em livro na época, considerando-os efêmeros e não-universais.

Edição      Enrique Shiguematu

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Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.