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GV CULT - Criatividade e Cultura

A literatura e o conceito de memória (II)

GVcult

03/10/2017 02h20

Por    Bernardo Buarque de Hollanda

"O Engenho Corredor foi a minha grande fonte literária"

"O 'testemunho da realidade' foi dado, assim, pelos membros mais seriamente atingidos pela crise e tivemos o grupo admirável de 'romancistas da memória', de que José Lins do Rego foi o expoente mais alto".

Gilda de Mello e Souza

A guinada literária da memória de princípios do século XX, presente em Proust e depois em Virginia Woolf, se relaciona com modificações mais profundas ocorridas no conhecimento científico, psicológico e filosófico. Pensadores como Sigmund Freud, Williams James e Henri Bergson trarão contribuições inaugurais para a compreensão da psiquê humana, até então presa a determinismos e a teorias mecanicistas. Freud, ao inventar a psicanálise, falaria do recalque, isto é, do processo de obstrução ao nível da consciência de emoções passadas do indivíduo. Este processo teria fundo e motivação sexuais, e ficaria alojado no inconsciente, outra descoberta freudiana no tocante às manifestações psíquicas. Ele precisaria ser liberado, a fim de que não se transforme em doenças como a histeria.

Enquanto o norte-americano William James, irmão do romancista Henri James, trata do fluxo da consciência no âmbito da psicologia, Henri Bergson vai articular, na filosofia, a memória à matéria, ou seja, o estoque de lembranças à dimensão sensível e palpável da realidade experienciada pelo indivíduo. A grande descoberta deste filósofo dizia respeito à duração do tempo interior. Para além de toda objetividade contida no tempo cronológico, haveria um descompasso entre este, com suas medidas temporais objetivas, materializadas na exatidão dos ponteiros mecânicos do relógio, e a interioridade do tempo psicológico, sujeita a múltiplos apelos e a variegadas dimensões. Estas se sucedem nos estados mutáveis da consciência e se movimentam, de maneira imprecisa e livre, na duração interior de cada indivíduo.

No Brasil, temos também alguns bons exemplos de romancistas modernos que se valeram do memorialismo. Sobre José Lins do Rego, o escritor Antônio Carlos Villaça comenta em apresentação a Banguê:

"O fino Eugênio Gomes se lembra de As ondas, de Virgínia Woolf, com seus processos inovadores. Há em José Lins o predomínio do olfato. O ensaísta de O enigma de Capitu se recorda da voz insólita de Sinhazinha, das chicotadas que aplica na negra Josefa, dos escarros constantes, dos gritos, da tosse do velho José Paulino, como também do ruído das cigarras, do apito do trem, da valsa tocada no piano do seu Lula, ou dos gritos deste diante de Carlos."

De todo modo, a vinculação à realidade, em detrimento da pura invenção especulativa, foi um dos aspectos programáticos mais frisados nas declarações do escritor ao longo da vida. É como se José Lins parodiasse a famosa frase de Stravinsky, segundo a qual uma obra de arte resulta de 90% de transpiração e de 10% de inspiração. Nos termos de José Lins, trata-se de 90% de memória e 10% de imaginação…

Dos comentários a respeito da obra de José Lins, uma das considerações mais esclarecedoras remonta à força telúrica inscrita na sua literatura. Ela foi dada ao jornalista Clóvis de Gusmão, em reportagem do início dos anos 1940. Antes de ter escrito Fogo morto, o escritor dizia:

"O Engenho Corredor foi a minha grande fonte literária. Lembrando-me dele fui escritor, contando a sua história escrevi os meus romances, fiz viver criaturas. Foi a terra que me deu força para trabalhar em 10 livros e realizar em 10 romances o que nunca imaginei ser possível. Dizem que sou um instintivo, um narrador como são todos os cantadores nordestinos. Agrada-me o instintivo, e gosto de ouvir esta palavra pregada aos meus livros. Vim da terra, sou da terra e quero continuar da terra. O velho Engenho Corredor continua a me alimentar, a me dar o que a minha imaginação carece. O massapé paraibano tem muito que dar. A cama que se acama na várzea e se repete em socas e ressocas. O instintivo não quer outra vida."

Aqui é possível ainda aproximar o autor paraibano das passagens de Minha formação, de Joaquim Nabuco, onde este retrata em tom nostálgico o engenho pernambucano Massangana, de seus primeiros anos. Se este terreno da literatura é repleto de evocações mais tradicionais de mocidade, como o Minha formação no Recife, de Gilberto Amado, ele esteve presente também na ficção, com as descrições inovadoras encetadas por Machado de Assis. Este se mostra capaz de tematizar e de "driblar" o próprio tempo em pelo menos duas obras: Memorial de Aires e Memórias póstumas de Brás Cubas, romance que conta a história em retrospectiva, a partir do fim.

Dentre os contemporâneos de José Lins, o gênero estaria sujeito a revelações de situações extremas e traumáticas, como Graciliano Ramos em Memórias do cárcere. Outra produção deste último, Infância, também se aproxima da indeterminação de José Lins, com um livro de memória estruturado e contado como ficção.

Ao tratar da obra de Graciliano Ramos, o crítico Antônio Cândido generaliza a relação de reciprocidade entre biografia e invenção: "… toda biografia de artista contém maior ou menor dose de romance, pois frequentemente ele não consegue pôr-se em contato com a vida sem recriá-la. Mesmo assim, porém, sentimos sempre um certo esqueleto de realidade escorando os arrancos da fantasia.".

Por fim, a evocação do passado ocuparia lugar de ponta na memorialística do mineiro Pedro Nava, composta em seis tomos de uma epopeia intimista – Balão cativo, Chão de ferro, Beira-mar, Galo das trevasO círio perfeitoque acaba por revelar a cultura brasileira do século XX.      

Edição      Enrique Shiguematu

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Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.