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GV CULT - Criatividade e Cultura

Os anos de formação de José Lins do Rego (IV)

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22/08/2017 06h01

Por    Bernardo Buarque de Hollanda

Assim já fizera José Lins com o colega e poeta Raul Bopp, em Recife. Ambos dividiram quarto em uma República durante a breve passagem universitária de Bopp na Faculdade de Direito da capital pernambucana.

A vivência de José Lins do Rego em Alagoas, entre 1925 e 1934, foi decisiva em sua formação. Lá, conheceu pares literários e influenciou uma talentosa geração de escritores. Logo que o conheceu, Aurélio Buarque de Holanda disse nutrir grande admiração. Guardava de José Lins a "distância do ídolo". Sublinhava, ainda, a influência decisiva dos escritos do autor, que vinham sendo publicados nos jornais da cidade:

"Aqueles artigos, escritos em linguagem quase oral, transbordante de pitoresco, deram-nos a conhecer – a Valdemar Cavalcanti, a mim e a vários outros – figuras como Gilberto Freire e Manuel Bandeira, e aos poucos lançou por terra o nosso culto dos antigos valores. Graças a eles começamos a aceitar a poesia moderna; a enxergar outras zonas poéticas acima do parnasianismo, cuja superioridade para nós era ponto pacífico."

A influência mais notável de José Lins sobre a geração alagoana será exercida na virada poética de Jorge de Lima (1893-1953), no final dos anos 1920. Crescido no ambiente parnasiano, este filho de pequenos comerciantes, formado na Faculdade de Medicina da Bahia, era já um veterano autor de sonetos, acumulados desde a estreia com a plaquete XIV Alexandrinos (1914), quando conheceu José Lins. Em 1927, um ano depois da chegada deste a Maceió, Jorge de Lima publica O mundo do menino impossível, onde já apresenta poemas modernos.

Encorajado pelo crítico paraibano, que no artigo "Notas sobre um caderno de poesia", publicado no Jornal de Alagoas, lhe sugere avançar ainda mais, Jorge de Lima inicia nova fase, superando a métrica e a rima de "O acendedor de lampiões". Com inspiração no torrão natal, o vilarejo Cerca-Rial-de-Macacos, situado na zona da mata alagoana, Jorge incorpora motivos oníricos, regionais e africanos nos versos de Banguê e Essa nêga Fulô, assim como na futura narrativa romanesca Calunga.

Assim já fizera José Lins com o colega e poeta Raul Bopp, em Recife. Ambos dividiram quarto em uma República durante a breve passagem universitária de Bopp na Faculdade de Direito da capital pernambucana. Bopp, futuro diplomata, viria a incorporar ritmos folclóricos e expressões afro-brasileiras ao seu livro de poemas Urucungo e, por isto, as poesias "A terra do sem-fim" e "A serra do sem-fim" foram dedicadas como "oferenda" a José Lins.

Relembra José Lins: "Pelo Recife passou em 1920 um poeta gaúcho dos mais interessantes que vi. Foi Raul Bopp, desbravando a Amazônia, arrebatado pela estética complicada das florestas, como dantes se seduzira pela civilização avançadíssima dos incas".

Já em Maceió o crítico paraibano vai influenciar a temática e a estilística de Jorge de Lima. Em decorrência disto, no ano de 1927, Jorge de Lima o convida a prefaciar seu livro Poemas, o que faz da obra um acontecimento literário de impacto e repercussão no meio letrado da cidade.

O prefácio assinado por José Lins louva em Jorge de Lima, mais tarde seu médico e dentista particular – ao lado de outros três, Gastão Cruls (1888-1959), Silva Melo (1886-1973) e Peregrino Júnior (1898-1983) –, a postura de independência. O poeta nordestino não se curvava nem ao passadismo parnasiano nem ao futurismo modernista, visto como uma moda fácil:

"Aos seus poemas ele deixou que vivessem à vontade. Fugiu de os ajustar aos seus preconceitos de antigamente, ou de os compor assim para não ficar para atrás, como certos sujeitos, sempre preocupados em tomarem a hora certa os trens que levam à notoriedade e à voga."

Foi durante a fase alagoana que se gestou o romancista e ficcionista José Lins do Rego. A história da edição do livro Menino de engenho é assim contada pelo brasilianista Laurence Hallewell, em O livro no Brasil:

"José Lins do Rego Cavalcanti já tinha a reputação de 'o grande crítico do Norte' quando enviou seu primeiro romance, Menino de engenho, ao irmão de Jorge de Lima, Hildebrando, pedindo-lhe que o fizesse publicar – mas por conta do autor. Cogitou-se de uma edição de 1.500 exemplares, na Pongetti Irmãos. Esta firma era uma antiga gráfica, e só se tornou editora em 1935. Ao invés disso, porém, Hildebrando entregou os originais a uma das novas editoras surgidas graças às novas oportunidades criadas pela revolução de 1930. Adersen Editores era uma firma muito pequena que Hersen e Adolfo Aizen haviam acabado de fundar e que estavam em busca de seus primeiros títulos. Haviam acabado de contratar a publicação de Poemas escolhidos, de Jorge de Lima, e receberam muito bem o novo romance, propondo, para espanto de Zé Lins, publicar uma edição de 2.000 exemplares, com pagamento de direitos autorais."

Mesmo sendo escrito no Nordeste, o livro reverberou no Rio de Janeiro, capital da República, em princípios da década de 1930 Em artigo publicado no Jornal do Brasil da época, o renomado filólogo identifica a novidade e os traços modernos do romance, considerando seu alcance "de todo o Brasil e um pouco de todo mundo". Ao tocar no tema do sexo e da libidinagem na vida rural brasileira, José Lins apresentava rasgos freudianos em sua obra – "puro Freud", dizia João Ribeiro – e dava toques modernos à narrativa naturalista. Anos mais tarde, José Lins confessaria que, na noite em que foi publicada a crítica, dormiu com o artigo de jornal dentro do bolso do pijama, tal a sua emoção com o texto.

Em razão do reconhecimento do público e da crítica, naquele mesmo ano Menino de engenho é premiado pela Fundação Graça Aranha. A fundação fora criada em 1930, por iniciativa de dona Nazareth Prado, escritora apaixonada pelo autor de Canaã, que pertencia a uma rica e tradicional família de fazendeiros em São Paulo.

De estirpe imperial, a linhagem remontava ao barão de Iguape e nela pontificavam nomes como Eduardo Prado (1860-1901), fundador da Academia Brasileira de Letras e autor de A ilusão americana; Antônio Prado (1880-1955), dono da Companhia Paulista, do Partido Democrático e prefeito do Distrito Federal (1926-1930); Martinho Prado, fazendeiro e deputado do Partido Republicano; e Caio Prado, pai do futuro historiador e editor Caio Prado Júnior (1907-1990).

O prêmio fora concedido no ano anterior ao romance O Quinze, de Rachel de Queiroz e, em 1932, outro romancista nordestino voltava a ser agraciado pela fundação. Conforme relata anos depois José Lins, outros membros da família Prado haviam influenciado em sua escolha, como os historiadores Yan de Almeida Prado (1898-1987) e Paulo Prado, sobretudo este, mecenas do modernismo e autor do ensaio Retrato do Brasil (1928).

Ainda residente em Maceió, o terceiro dos livros publicados por José Lins apresenta uma novidade editorial que será decisiva para a carreira do escritor. Enquanto os dois primeiros romances haviam sido publicados por editoras de pequeno e médio porte, Banguê aparece no mercado de livros sob a chancela de uma nova, porém promissora casa editorial, comandada por José Olympio (1902-1990).

O editor, nascido no interior de São Paulo, fundara a empresa no final de 1931 e, naquele ano, após casar-se com Vera Pacheco, transferia para o Rio de Janeiro o seu empreendimento comercial. José Olympio vislumbra em José Lins um potencial vendedor de livros, alguém capaz de alavancar a editora iniciante. A aposta no êxito de vendas do romancista recém-revelado resulta na proposta de publicação de Banguê.

Os novos contatos estabelecidos por José Lins no centro político, econômico e cultural do país – seja com Paulo Prado seja com José Olympio – fazem com que ele se torne conhecido no eixo Rio / São Paulo. Dadas as distâncias de então – o telégrafo era um dos instrumentos de comunicação na época e os catálogos das livrarias eram comprados por via postal –, comunica-se por cartas com Yan de Almeida Prado. Para este, José Lins queixa-se justamente do quão distante estava naquele momento, referindo-se à grandeza do país – "o Brasil é tão grande que ninguém nem pode ver os amigos".

Em Alagoas, José Lins se sente isolado:

"Não pode avaliar quanto gosto de receber suas cartas. Aqui neste isolamento de Maceió é uma grande coisa saber que um sujeito do seu valor se lembra da gente para mandar umas palavras de amizade. Estou pegado no meu último livro que terá o nome 'Bangüê'".

Nesse ínterim, o editor José Olympio, antes mesmo de se instalar no Rio de Janeiro, continua a telegrafar, fazendo-lhe algumas ofertas. Ante as tentadoras propostas, em 1934, José Lins "toma o próximo navio" para o Distrito Federal. Lá, acerta o contrato de edição de Banguê com dez mil exemplares, além da reedição de Menino de engenho com uma tiragem de cinco mil para o mesmo ano e da segunda edição de Doidinho para 1935.

Na capital da República, em junho de 1934, José Lins faz o lançamento do novo livro. Fica hospedado durante dois meses em uma pensão na Rua do Catete, bairro onde ficava o palácio de governo do então presidente Getúlio Vargas. Poucos anos depois, Mário de Andrade também residiria nas proximidades daquele bairro. Área tradicional da cidade, onde seria alojada a Universidade do Distrito Federal (UDF), dos catedráticos nacionais e estrangeiros, sobretudo franceses, nela os dois escritores iriam se encontrar e iniciar uma amizade reconciliadora. É de se registrar também que o ambiente daquela casa onde morou provisoriamente José Lins seria mais tarde retratado no romance Eurídice, de 1947.

O que explica o sucesso romanesco da prosa zeliniana? O crítico pernambucano Álvaro Lins (1912-1970) sugere uma linha de continuidade entre o romance moderno e a fabulação primitiva, para explicar a experiência ficcional bem-sucedida:

"Na arte do romance, o enredo é o elemento mais antigo, como o mais primário. Primitivamente, era o romance, embora sem essa denominação, uma história que o narrador transmitia a um ouvinte, e depois aos leitores, com um entrecho tanto ou quanto possível encantador ou terrífico, com princípio, meio e fim, capaz de empolgar a atenção do espectador. A fábula tinha a máxima importância na ficção anterior ao verdadeiro romance. Visto de perto, porém, o enredo em si mesmo é um elemento secundário, sempre resumível a uma meia dúzia de linhas."

Outros críticos, porém, foram menos otimistas na identificação de uma passagem contínua e direta da oralidade à escrita, da fábula ao romance. Mas Zé Lins vai sustentar que a sua contadora de histórias predileta, que o ensinou a narrar, era mesmo Totônia. Esta vinha a ser parente de um trabalhador do engenho, um marceneiro e tanoeiro de nome Águeda. Em uma das várias passagens da obra memorialística, o escritor comenta:

"A voz da velha Totônia enchia o quarto, povoava a minha imaginação de tanto gestos, de tantas festas de rei, de tantas mouras-tortas perversas. Tinha a velha um poder mágico na voz. Era sogra do mestre Águeda, tanoeiro, um negro que mal abria a boca para falar. Tinha para mim um poder de maravilha tudo o que saía da boca murcha da velha Totônia. – Conta outra".

Gilberto Freyre explica o fascínio da arte de narrar histórias no Nordeste em razão de sua oralidade, do fato singular de serem contadas por negras. Em terras brasileiras, a capacidade de adaptar e de "amolecer" a língua europeia dava às narrativas um outro sabor. As empregadas, oriundas das senzalas, acabavam por ter um papel central na composição da imaginação dos meninos, em especial dos filhos das elites agrárias nordestinas, estudadas pelo mesmo sociólogo pernambucano:       

"Foram as negras que se tornaram entre nós as grandes contadoras de histórias. Os africanos, lembra A. B. Ellis, possuem os seus contistas. 'Alguns indivíduos fazem profissão de contar histórias e andam de lugar em lugar recitando contos'. Há o akpalô fazedor de alô ou conto; e há o arokin, que é o narrador das crônicas do passado. O akpalôé uma instituição africana que floresceu no Brasil na pessoa das negras velhas que só faziam contar histórias. Negras que andavam de engenho em engenho contando histórias às outras pretas, amas dos meninos brancos. José Lins do Rego, no seu Menino de Engenho, fala das velhas estranhas que apareciam pelos bangüês da Paraíba: contavam histórias e iam-se embora. Viviam disso. Exatamente a função e o gênero de vida do akpalô. Por intermédio dessas negras velhas e das amas de menino, histórias africanas, principalmente de bichos – bichos confraternizando-se com as pessoas, falando como gente, casando-se, banqueteando-se – acrescentaram-se às portuguesas, de Trancoso, contadas aos netinhos pelos avós coloniais – quase todas histórias de madrastas, de príncipes, gigantes, princesas, pequenos-polegares, mouras-encantadas, mouras-tortas. A linguagem infantil também aqui se amoleceu ao contato da criança com a ama negra. Algumas palavras, ainda hoje duras ou acres quando pronunciadas pelos portugueses, se amaciaram no Brasil por influência da boca africana. Da boca africana aliada ao clima – outro corruptor das línguas européias, na fervura por que passaram na América tropical e subtropical."

A união entre o gesto e a fala na recitação de poesias musicadas evidencia o sentido cênico e teatral da memória coletiva na cultura popular e recupera a questão da totalidade da percepção sensorial, reunindo aspectos antes dispersos e fragmentados. Para Zumthor, estudioso da Idade Média, o caráter indissociável entre "a letra e a voz", entre o corpo e a fala estava posto desde antes da invenção da imprensa pelo alemão Johannes Gutemberg (1390-1468). Ele extrapolava os limites do registro textual. Com isto, o autor recuperou a ênfase na articulação entre "a pessoa e o jogo do intérprete, o auditório, as circunstâncias, o ambiente cultural…".

Já segundo Teófilo Braga (1843-1924), foi Gonçalo Fernandes quem inseriu o conto lusitano na grande corrente da literatura europeia. Coube a este contemporâneo de Camões, Cervantes, Montaigne, Shakespeare e Erasmo a iniciativa de reunir em livro os ditos do povo, sob a forma de trinta e oito contos rudimentares que tratavam de fatos e figuras da Península Ibérica da época.

Edição      Enrique Shiguematu

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Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.