Gilberto Freyre e José Lins do Rego: uma amizade intelectual
"…a mais bela história de José Lins do Rego
não é somente da literatura brasileira, mas das grandes
amizades que glorificam um coração humano".
José Américo de Almeida
O que é a amizade? Como se reconhece um amigo?
Essa questão, à primeira vista banal em nosso cotidiano, já foi objeto de reflexão da mais alta filosofia. A começar por Aristóteles, que considerava a amizade mais importante que a própria justiça, quando se tem em vista a harmonia e o bom funcionamento da sociedade. No século XVI, Michel de Montaigne (1533-1592), o filósofo da língua livre, que tanto inspirou José Lins do Rego, dedicou um de seus famosos ensaios ao tema. A propósito do assunto, o que diria o escritor francês?
Montaigne, baseado na experiência pessoal de amizade com Etienne de La Boétie (1530-1563), autor de A servidão voluntária, distingue a amizade das relações familiares, sejam aquelas entre pais e filhos, entre maridos e esposas ou entre irmãos. Para o filósofo seiscentista, a amizade seria resultado de um amadurecimento da idade e do espírito, sem os excessos nem os destemperos das paixões.
Ainda segundo o autor de Ensaios, há uma outra distinção que se pode fazer entre a grande amizade e a amizade comum. Esta última é mesclada a serviços e favores que escapam aos verdadeiros amigos, ao passo que, para estes, as vontades estão fundidas em uma só vontade. O entrosamento entre duas almas acaba por unir, espiritualmente, os dois corpos. Em decorrência disto, a grande amizade atinge a perfeição quando ela se torna una e indivisível.
A importância da amizade para Montaigne é de tal ordem que este, lembrando os estoicos da Antiguidade, submete o próprio amor à amizade: "o amor é o desejo de alcançar a amizade de uma pessoa que nos atrai pela beleza".
À luz dessas lições filosóficas, seria possível pensar a amizade que uniu dois jovens escritores brasileiros?
*
No início da década de 1920, José Lins e Gilberto Freyre se conhecem em Recife. Travam uma amizade à primeira vista, intercambiam ideias, fazem viagens e vivenciam passeios juntos por paragens pernambucanas e nordestinas. Zé Lins considera-se discípulo de Freyre, que aceita de bom grado a condição de seu guru intelectual, capaz de influir no destino do futuro romancista.
A ascendência de Gilberto Freyre na região é notória. Sua renovação intelectual representada vai ter consequências diretas no meio cultural pernambucano, influindo não apenas em autores como José Lins do Rego. Primeiro, com a publicação de Livro do Nordeste (1925) – uma homenagem ao centenário do jornal Diário de Pernambuco – e depois, com a criação do Centro Regionalista do Nordeste (1924). Nele, procura-se registrar a memória nordestina, a englobar: as manifestações folclóricas, as revoluções libertárias, os poetas, a fabricação de rendas, as artes plásticas, as igrejas, os conventos, o açúcar, o algodão, as fibras, o comércio, a indústria, a presença holandesa, as relações internacionais, os escravos.
Dotado de estatuto e ata de fundação, o Centro vai permitir que em 1926 se organize o Congresso Regionalista do Recife, para o qual são convidados não apenas acadêmicos e professores, mas padres, juízes, senhores de engenho, advogados, médicos, presidentes de clubes de carnaval, velhas cozinheiras, doceiras, o governador do Estado, o arcebispo e o juiz federal.
Nesse mesmo ano, Gilberto visita o Rio de Janeiro e conhece intelectuais importantes, indo à casa de Manuel Bandeira, na tradicional Rua do Curvelo, em Santa Teresa. O poeta pernambucano, chamado de o "São João Batista do modernismo" por Mário de Andrade, fora participante ativo da Semana de Arte Moderna. Além de Bandeira, Freyre conhece o então diretor da Revista do Brasil, o mineiro Rodrigo Melo Franco de Andrade, e os editores da revista Estética: Sérgio Buarque de Holanda e Prudente de Morais Neto.
Ainda no Rio, participa de uma famosa roda de samba na Rua do Catete, aonde vai em companhia de Sérgio Buarque e Pedro Dantas. Naquela noite, é apresentado a compositores populares como Donga, Pixinguinha e Patrício Teixeira. Os contatos no Distrito Federal lhe permitem o início do entendimento com alguns grupos modernistas sediados no Rio. Gilberto se encanta com a música de Heitor Villa-Lobos e com a pintura de Emiliano Di Cavalcanti, que compõe quadros pitorescos da cultura popular carioca, como O cordão e Mulatas.
A revisão do modernismo do Sul é confirmada por Freyre em São Paulo, onde inicia entendimentos com Mário de Andrade, que o considera "inteligentíssimo". Lá, faz-se amigo de Paulo Prado, mecenas que à época preparava o ensaio Retrato do Brasil, e consolida, assim, uma fase mais amistosa de Gilberto com a intelectualidade do eixo Rio – São Paulo.
Do ponto de vista político, Gilberto Freyre não deixara de ter relações diretas com o poder. Apoiara o ex-governador de Pernambuco, Sérgio Loreto, e se tornara aliado do novo governador Estácio Coimbra (1926-1930). Este – vice-presidente da República no governo de Arthur Bernardes – nomeia Gilberto seu chefe de gabinete. Na conjuntura revolucionária de 1930, Coimbra é forçado a deixar o país e Gilberto presta-lhe solidariedade, partindo em sua companhia.
Nos anos 1930, Gilberto vivencia então a experiência do exílio, passada em Portugal e nos Estados Unidos, com vindas pontuais ao Brasil. Em Recife, organiza o I Congresso Afro-Brasileiro de 1934, dedicado à cultura negra, na qual José Lins do Rego tomará parte como conferencista e signatário. Durante a estada na Califórnia, Gilberto leciona na prestigiosa Universidade de Stanford, fase em que amadurece a publicação da obra clássica Casa-Grande& senzala (1933).
Depois da temporada em Recife nos idos de 1920, Zé Lins e Gilberto se distanciariam, em função dos compromissos profissionais. Continuariam, no entanto, a nutrir aquilo que Montaigne celebrou como a verdadeira amizade, sob a forma de uma admiração mútua e de influências recíprocas e contínuas, mesmo que separados pela distância territorial.
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