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GV CULT - Criatividade e Cultura

Tunga: galeria True Rouge

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29/06/2017 06h06

Larissa Cote e Vivian Gaione

                                                                                                 dor amor

amor dor

                                                         clamor clamor  

                                                     amordor

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Assim os caminhos seguem e as concepções se constroem. A linha que separa o amor e a dor é quase invisível e quem sabe os dois sentimentos não são fios de um mesmo tecido; sentimentos que arquitetam o mesmo ser humano! True Rouge deixa claro o grito que está calado nos corpos. A representação do vermelho é um berro dos sentimentos mais profundos que mesclam o amor e a dor presentes no ser, já as formas e o cheiro clamam por desconstrução pessoal ou social. O vermelho, as formas, o cheiro, a posição e as cordas contam a história de um indivíduo mergulhado em seus sentimentos e percepções de mundo, narrando a profundidade de um humano, demasiadamente humano.  

Vermelho, vermelho, vermelho. É isso que se observa em todos os lugares: no chão, na corda e nos frascos repletos de líquido. Essa representação do "verdadeiro vermelho" coloca a reflexão de seu significado: Amor ou Dor, eis a questão.  

Tunga – True Rouge, redes, madeira, vidro soprado, pérolas de vidro, tinta vermelha, esponjas do mar, bolas de sinuca, escovas limpa-garrafa, feltro,bolas de cristal, 1315 x 750 x 450 cm, 1997

A enfática presença do vermelho em True Rouge demonstra o quão um signo ilustra histórias, lembranças diversas; a reação de cada pessoa ao deparar-se com a instalação será constantemente particular. Pois o vermelho pode caracterizar o entardecer, uma parede na casa dos avós, o coração, o amor. O vermelho pode caracterizar um corte, o resultado de um conflito, a dor.  

As representações artísticas, assim como o vermelho, não seguem uma sequência lógica dualista: fragmentada por obra e espectador expressos em um cenário previsível. Por trás de um objeto, pintura e música, há códigos tanto do criador quanto do receptor e a junção das perspectivas concebidas antes deste canal geram as transformações. Portanto, história e vivências afetam a relação com a arte, indicando um caminho interpretativo.

True Rouge é uma "instauração" de Tunga, ou seja, é a partir de uma performance ou instalação que a obra começa a construir-se. Na instalação, atores nus interagiram com objetos pendurados: recipiente suspenso contendo um líquido viscoso e vermelho derramado sobre os vidros, levando à interpretação dos ciclos vitais. Com essa instalação, Tunga provoca o espectador a colocar seu mundo interpretativo em uma sala marcada pelo vermelho. Presentemente, diferente do momento da performance, não há a possibilidade de entrar nu para apreciação da criação, consequentemente, a experiência é formada através do capital cultural agregado, convertendo-se em compreensão sobre o exposto.  

Partindo do pressuposto de que as obras de arte exploram além da racionalidade, pois não correspondem a uma leitura singular, pode-se entender como cada indivíduo cria um vínculo diferente com o trabalho apresentado e, principalmente, capta uma mensagem distinta do "eu existente" do conteúdo. Assim, se esclarece como o artista e o espectador podem ter ideias tão distintas e sensações divergentes em relação a uma mesma instalação. Com a performance, Tunga tenta explorar uma leitura subjetiva sobre sua própria criação, fazendo com que True Rouge demonstre as inconstâncias do amor e provoque uma reflexão mais profunda sobre as relações amorosas e as manipulações presentes em todas conexões pessoais, simbolizada pelo material que segura as peças da obra, trazendo a sensação de que a qualquer momento os fios pudessem se romper e os sentimentos fossem se quebrar ao chão.  

Ao entrar na sala, onde se encontra a instalação, o primeiro sentido a ser instigado é o olfato. O cheiro muito forte fruto do material presente na composição proporciona sentidos abstratos que conotam incômodos. Ao consumar a análise do ambiente, conclui-se que o projeto demonstra um grande grito de ódio; um grito calado em uma galeria. Sente-se a manipulação em todos os lugares, ilustrando o homem-massa preso em seus fios de mentiras, de medo e de raiva. Sobre o mesmo cenário, aqueles que tentavam escapar dessa massificação do ódio sangravam sozinhos. As paredes brancas seriam como lágrimas de uma sociedade morta; de um horror completo. A dor consome os pensamentos ao ponderar que o vivenciado por curto período na galeria, hipoteticamente, poderia ser a representação do totalitarismo, do passado ou do ódio do presente, resultando no questionamento: será que houve mudanças?

Após a afirmação da distinção entre a intenção do autor e as percepções concebidas na visitação, tornou-se clara a grandiosidade da arte contemporânea e o quanto a representação possui inúmeras nuances a serem exploradas. Contudo, novamente a dupla embasbacou-se, visto que, assim como a obra transmitiu a ideia de violência institucionalizada, a própria elitização e concentração da arte em alguns espaços, propaga a violência para com a população sem acesso fácil a tais equipamentos. Este panorama interfere na vida das pessoas em todos os sentidos, desde o quesito experiências pessoais à comunicação, devido à restrição de obtenção de aprendizagem cultural limitada a suas vivências.  

O sociólogo francês Pierre Bourdieu, o filósofo Alain Darbel e a historiadora Dominique Schnapper descrevem em "O amor pela arte" a ideia de que o acesso aos bens culturais são benefícios concedidos àqueles que detêm capital. Entretanto, diferentemente de outros setores, a exclusão das camadas mais pobres é legitimada, visto que, os museus são abertos e possuem ingressos relativamente baratos.

Muito além do preço pago no ingresso, o parâmetro que divide os públicos consiste em distintas impressões dos apreciadores ao visitarem um museu. Dentre os pontos, está em jogo o quanto o conhecimento prévio sobre o que se retrata interfere na interpretação.

Para aqueles que dispõem de pouca informação, o objeto analisado não passa de algo inócuo. As cores e formato remetem diretamente a algo já tangível, livre de novas perspectivas. Em contrapartida, o indivíduo inserido no exercício de apreciação lê o que é exposto como uma viagem repleta de novidades, contextos subentendidos. Além disso, passa pelo processo da reflexão que complementa sua experiência pessoal. Portanto, quanto maior o conhecimento prévio, maior é a fruição do ambiente cultural no qual a pessoa se depara.

Logo, a dificuldade de interpretar e reconhecer-se dentro de um ambiente artístico afasta aqueles que não possuem referências e a sociedade os culpabiliza de não realizarem visitas. Essa realidade amplia-se nas gerações que, por não serem incentivadas pela família desde cedo, adotam a ideia de que a arte é complexa e não lhes pertence.

Analisando o contexto, entende-se que aquisição de conhecimentos para o apreço das manifestações culturais depende da erudição advinda das instituições, exemplificado pela escola. A transmissão equânime do conhecimento mais sofisticado é a ferramenta capaz de trazer pessoas que naturalmente não se inseririam nesse espaço, tornando real o pensamento de que os museus são abertos à população e não são a representação de uma legitimação controversa, como ocorre nos dias atuais.

A ausência ou pouca presença de aparelhos culturais em alguns lugares reverbera uma condição de exclusão social, uma vez que esse público terá sua capacidade interpretativa alterada mudando sua própria relação com a arte e outros segmentos da vida. A lógica de concentrar esses aparelhos demonstra a tentativa de congregar os saberes e as experiências para um determinado segmento social. Deixando a reflexão de que espaços como Inhotim são importantíssimos para a arte, é crucial a desconcentração do acesso a tais lugares, pois, isso transfigura-se como mecanismo de democratização do saber e possibilidade de transformação cognitiva humana, para além do racional, atingindo os sentidos como uma forma de afirmar o "eu cidadão".  

Edição: Enrique Shiguematu

Ensaio apresentado à disciplina Sociedade & representação: o Brasil através das artes, ministrado pelo professor Bernardo Buarque, para alunos de primeiro período de Administração Pública, da EAESP/FGV, São Paulo

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.