Topo

GV CULT - Criatividade e Cultura

Uma historiografia do iluminismo (I)

GVcult

02/05/2017 06h26

Por    Bernardo Buarque de Hollanda

O século XVIII é conhecido pela historiografia tradicional por ter colocado o homem no centro de sua visão de mundo e organizado em torno dele a sua reflexão. A centúria retoma assim, à sua maneira, um dos princípios preconizados pelo classicismo no século XVI, depois de ter assistido, com o advento do Barroco àquilo que o historiador francês Paul Hazard (1961) chamou de "crise da consciência europeia", entre 1680 e 1715. O Iluminismo representaria, portanto, a culminância de um movimento artístico-intelectual iniciado com o Renascimento, o que, todavia, não constitui um consenso, conforme pontua o professor Francisco Falcon (2004), em livro introdutório e homônimo: "Iluminismo" (Editora Ática).

Enquanto o historiador francês Pierre Chaunu (1971) vê o século das Luzes como ponto de chegada, como prolongamento da Idade clássica, outros postulam o "glorioso século XVIII" como ponto de partida para aquilo que se convencionou chamar modernidade. Esta consistiria no esvaziamento da plenitude metafísica de tempo e espaço, na invenção da ideia de progresso e na construção de uma ordem social que procura imitar as leis da ordem natural.

Mas, como se sabe, essa imitação só seria possível através do conhecimento da perfeição das leis da natureza, conforme já fizera a Revolução Científica do século XVII – Copérnico, Bacon, Descartes, Galileu, Brahe – o que reenvia à ligação com o passado assinalado por Chaunu. Em seu projeto de edificação social, os philosophes acreditaram ser possível conhecer as leis da sociedade e dotar o mundo urbano da mesma inteligibilidade racional própria e inerente ao mundo natural.

Antes dos iluministas franceses, os teóricos do liberalismo inglês vão considerar a natureza humana como a base dos direitos e das liberdades do indivíduo e como o ponto de partida da construção de uma nova ordem social em oposição ao mundo feudal, à ordem teocrática medieval e à monarquia absoluta.

Já a filosofia francesa, mais do que a reflexão transcendental, buscava reunir e sistematizar todo o conjunto de saberes e ensinamentos universais adquiridos e produzidos pela humanidade até o século XVIII. Visava, a partir deste saber, irradiá-lo para todo o globo e transmiti-lo sob a forma da universalização da proporcionada pela pedagogia e pela educação. Isto se concretizaria através da Enciclopédia, série de 30 volumes publicados a partir de 1751 por Diderot e D'Alembert.

Quer como continuidade quer como ruptura, o encadeamento temporal do século das Luzes na História moderna suscita polêmica. Em relação à ideia de continuidade, é o sociólogo inglês Geoffrey Hawthorn (1982), no livro "Iluminismo e dúvida", quem aponta para um certo esquematismo presente na historiografia que convencionou apresentar a Revolução Científica, e aquilo que aconteceu entre os séculos XV e XVIII, como um progressivo embate entre Fé, de um lado, e Razão, de outro. A seu juízo, nada mais esquemático e simplificador.  De fato, segue ele, o Iluminismo lutou com todas as suas forças contra a superstição e o obscurantismo, mas é preciso frisar o quanto, desde a Renascença, a lei natural e a lei divina estão separadas, porém integradas.

O argumento central de Hawthorn é o de que há um deslocamento sutil no discurso que equaciona Deus, Natureza e Razão, de maneira que o primeiro elemento, antes separado, superior e anterior ao segundo, passa pouco a pouco a ser expressão deste, o que justifica e autoriza o conhecimento divino por intermédio do conhecimento natural.

Foi observado também que não é possível pensar numa homogeneidade exclusiva francesa em relação ao Iluminismo, posto que há inúmeras variáveis histórico-culturais importantes a serem consideradas, sobretudo três: a) O privilégio no racionalismo, com a elaboração de quadro conceituais e sistemáticos dedutivos, versus o privilégio no empirismo, em que a realidade empírica permite a indução e a generalização de teorias; b) as diferenças religiosas na Europa, entre católicos e protestantes, e suas especificidades na relação com o saber; c) as tradições políticas e a base social de cada país, com o predomínio seja da nobreza no caso francês, seja da burguesia no caso inglês.

Dito isso, o autor busca pensar as teorias sociais formuladas pelos autores ligados ao Iluminismo, como Montesquieu e Rousseau, que fornecem respostas a uma pergunta fundamental: se a natureza é uma expressão divina e se cabe ao homem conhecer a natureza, qual o lugar do Homem na Natureza, aqui no caso extensível ao que se concebe por Sociedade?

A indagação de Hawthorn implica uma antiga questão moral, junto a uma questão científica. Montesquieu, nobre barão de uma província francesa, em O Espírito das Leis (1748), se propõe a pensar na existência de uma lei e de uma justiça universais, mas percebe que as variações locais implicam em leis e justiças particulares. As variantes locais derivam de diferenças manifestadas no temperamento entre os homens, por sua vez originadas das oscilações naturais, em fatores como o clima. Tem-se aí esboçada uma distinção entre o universal e o relativo, ainda que escorada no determinismo climático.

Já o lugar do homem na natureza, segundo o sistema rousseauniano, está relacionado à ideia de um contrato social e de uma liberdade civil, que entende não ser mais possível um refúgio na natureza primitiva do homem selvagem. Embora seja o homem corrompido pela sociedade, enquanto um "bom selvagem" vive à margem dela, sem seus vícios, a humanidade passou por 4 estágios, a partir dos quais conheceu a moral, o bem e o mal. Sendo assim, não cabe regredir a um passado idílico, nem é possível simplesmente abolir o mal.

A relação do homem com a natureza, por abrir mão de suas vontades meramente instintivas e individualistas, tem de fundar uma ordem social em que o ser humano seja consciente de seus direitos e deveres para com o outro e para consigo mesmo. Esta necessidade enseja o surgimento da democracia representativa e do sistema parlamentar, através do estabelecimento de constituições e de cartas de direitos civis.

Edição      Enrique Shiguematu

Bernardo-Buarque-de-Hollanda-1024x213

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.