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GV CULT - Criatividade e Cultura

O túnel de intimidade de Cláudia Andujar

GVcult

21/12/2016 06h09

Cláudia Ayumi Enabe

Lucilene Moreno da Silva Reis

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Um túnel de intimidade do qual não se sai incólume. É a sensação de penetrar na Galeria Cláudia Andujar, construída sobre uma encosta circundada por vasta vegetação, na extremidade leste do Instituto Inhotim, em Brumadinho, Minas Gerais. Talvez por demandar uma longa subida, guiada pelas trilhas que desbravam a paisagem verde, composta por bromélias e palmeiras, o edifício fornece certa impressão de isolamento. Sobressai-se a composição de tijolos da parede, o interior é iluminado pela luz solar que penetra pela abertura a qual conduz à entrada da galeria.

A galeria está dividida em cinco espaços, nos quais estão expostas fotografias e outros artigos recolhidos durante a convivência da fotografa com a tribo Ianomâmi. O espaço é permeado por áreas iluminadas e grandes portas de vidro que remetem a um pátio interno. Percorrer o local favorece a percepção da convivência entre uma dimensão de abertura, a exposição, e uma dimensão hermética, na qual cuidadosamente a intimidade deve ser desvelada.

Nota-se o trabalho da ação curatorial e do desenvolvimento arquitetônico para compor uma macroestrutura capaz de refletir a narração da experiência que transformou a vida da fotógrafa suíça Cláudia Andujar. Os cuidados da curadoria, ressaltados no pequeno panorama acerca de arte contemporânea como fundamental para a redefinição de leituras das obras a partir do final da década de 1990 (Luiz Camilo Osório, 2009, p. 65), concentraram-se em fazer com que a disposição dos elementos da criação de Andujar narrem o que espera ali, em meio ao isolamento no qual o edifício aparenta estar imerso, para ser contado da mesma forma que a história da comunidade Ianomâmi, redescoberta pela câmera da artista.

O primeiro espaço permite ser percorrido com facilidade. O único objeto que ocupa uma pequena parcela do centro é um banco de madeira em que se sentam os visitantes para observar as fotografias que retratam principalmente o deslumbramento inicial pelo Rio Negro, em vista noturna, e pela flora amazônica. O segundo espaço reflete ainda o encantamento da turista. A câmera de Andujar capta as cores, as pinturas circulares feitas na face e no corpo daquelas pessoas de pele avermelhada e olhos repuxados, o sorriso de um jovem deitado em uma rede, de uma criança adornada com penas presas aos seus cabelos, figuras em posições extremamente fotogênicas.

O olhar que incide sobre esse povo indígena nos dois espaços descritos é um olhar estrangeiro, turístico. Ele se move com liberdade pela superfície da região, admirado com a beleza da paisagem, ignorante da real narrativa que se desenvolve no cerne da Floresta Equatorial.

Caminha-se para o interior do edifício, rumo ao terceiro espaço que é mais difícil que os outros. Não há a mesma liberdade de movimento; é preciso embrenhar-se atrás de uma parede que corta o ambiente. O colorido das fotos anteriores foi suprimido, as que estão pregadas neste local são em preto e branco. Também os modelos sorridentes, Peris e Iracemas da Floresta Amazônica, dissolveram-se. Do modo como o visitante é condicionado a infiltrar para o interior da galeria, a câmera de Andujar aprofunda-se no mirar da realidade da comunidade ianomâmi.

As imagens não são sempre precisas, algumas enevoadas pela fumaça oriunda de um ritual xamânico, outras pelos gestos do corpo a ser fotografado. Não são estáticas como aquelas que recobriam os espaços anteriores. A artista retrata o movimento da existência daquela comunidade, o cotidiano ocultado pelas árvores latifoliadas e deformado pelo olhar estrangeiro, o qual preza a busca deslumbrada pelo diferente, pelo exótico. A câmera capta a descoberta da tribo ianomâmi em profundidade por Cláudia Andujar, os olhos da artista voltam-se para o corpo dos ianomâmi, desnudos, um pescoço, um momento de êxtase, as relações entre os membros, o momento de descanso: as cenas da narrativa ianomâmi. O olhar da artista parte do cerne da intimidade ianomâmi, que se confunde com a sua própria durante o registro das cenas.

O quarto espaço define-se por ser o ponto no qual as narrativas confundem-se. As roupas a poliomielite, o sarampo e a máquina cobriram os ianomâmis, como retratam as fotos presas a uma parede que divide o ambiente em dois. A década de 1970 é um período tortuoso para a comunidade ianomâmi. O advento do garimpo e a construção de estradas arrasam a floresta estabelecem o contato conflituoso entre o homem branco e o povo indígena.

Entre 1981 e 1983, a fotógrafa une-se a um grupo de estudantes de medicina da Escola Paulista de Medicina para executar uma campanha de vacinação entre os membros dessa comunidade amazônica. A língua utilizada pelos ianomâmis não contém expressões que designem nomes próprios, Andujar decide numerá-los e fotografá-los para que a identificação fosse facilitada durante o fornecimento de assistência médica. As narrativas cruzam-se quando a fotógrafa percebe um paralelo entre sua própria história e a história daquele povo. É o instante de profunda identificação entre a artista e o objeto da sua obra. O pai de Cláudia Andujar fora remetido a um campo de concentração, e o fato de sua família haver se transferido de cidade em cidade tantas vezes deveu-se ao medo da perseguição nazista. Reflete que a numeração feita aos perseguidos pelos agentes nazistas, os quais "marcavam para morrer", enquanto ela "marcava (os ianomâmis) para viver".

O último espaço, o quinto, é como um anexo, uma cena extra, da experiência de imersão da fotógrafa suíça em uma comunidade indígena da Floresta Equatorial. Nas ilustrações presas à parede, em um ambiente que fornece liberdade de movimento semelhante ao dos primeiros espaços, são perceptíveis elementos comuns aos adornos usados nas pinturas corporais presentes nas fotografias anteriores, como as formas circulares, e a representação de homens que se assemelham a árvores, com pernas compridas que se parecem com raízes. Após uma intensa vivência da existência ianomâmi através da lente de sua câmera fotográfica, Cláudia finaliza com o pedido para que eles narrem sua própria realidade.

A presença de uma galeria fixa no instituto Inhotim que contém a história desse povo e que leva o nome de Andujar torna possível a permanência de uma história tão significativa para o nosso país. Com suas fotografias, Andujar tornou visível algo que talvez seria camuflado: o desterro deste povo.  Ela registrou por meio das fotos os efeitos nocivos que o contato com o homem branco causou à tribo, ressaltando a necessidade da demarcação das terras habitadas pelos ianomâmis. Andujar chegou a acompanhar a construção da Perimetral Norte, rodovia que fez parte do plano de integração nacional, cuja função encontrava-se entre os planos desenvolvimentista do governo militar. A execução de tal projeto impactou negativamente a vida dos ianomâmis, com a modificação da paisagem na qual habitavam por gerações, e também com a propagação de doenças aos quais os membros da tribo não podiam resistir.

Com isso, Cláudia coordenou uma campanha pela demarcação das terras pertencentes aos ianomâmis por meio da ONG Comissão pela Criação do Parque Yanomami, de 1978 até 1992, ano em que finalmente a demanda da demarcação das terras da tribo foi correspondia. O seu trabalho possui forte caráter de ativismo político.

A câmera de Andujar permitiu que os ianomâmis sobrevivessem não apenas em fotografias. No momento da inauguração da galeria de Andujar membros da tibo estiveram presentes, podendo presenciar registros sobre a existência de seu povo em um local tão significativo para a preservação do patrimônio cultural brasileiro como o Instituto Inhotim.

A atuação de Andujar evidencia a relevância da fotografia como arte, como forma para estruturar narrativas. Segundo Osório em Arte Contemporânea Brasileira: Multiplicidade Poética e Inserção Internacional, a persistência dos problemas sociais gerou a constituição de uma produção complexa e, ao mesmo tempo, vibrante em arte. Este é o leitmotiv da obra de Andujar: o retrato de um grupo oculto para os olhos da chamada "civilização", uma narrativa que seria aniquilada caso não houvesse uma intervenção ativa por sua preservação.

Edição: Enrique Shiguematu

Ensaio apresentado à disciplina Sociedade & representação: o Brasil através das artes, ministrado pelo professor Bernardo Buarque, para alunos de primeiro período de Administração Pública, da EAESP/FGV, São Paulo

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.