Sujeito e representação no pensamento moderno (II)
Por Bernardo Buarque de Hollanda
"Toda la gracia de la pintura se concentra en esta dual condición:
su ansia de expressar y su resolución de calar"
Ortega y Gasset
In: Velásquez
A investigação conceitual do par sujeito-representação na história da filosofia não se esgota em si mesma. Ela traz implicações para as artes em geral, para a literatura e a pintura em particular. Toda a tradição que se formou quanto ao lugar da ciência na sociedade ocidental tem consequências para a área artística. O papel reservado ao escritor e ao pintor desde, por exemplo, a arte figurativa até a arte abstrata, situa-se na órbita das concepções de representação e sujeito moderno.
Conforme a argumentação de Costa Lima, que retomamos aqui, o primeiro polo que tomou vulto na era moderna foi a teoria da imitação quinhentista, quando se converteu a antiga mimesis grega em seu suposto equivalente latino, a imitatio. Este conceito ligou-se à ideia de representação objetiva da realidade e se impregnou dos atributos de verossimilhança: cópia, decalque, réplica e reduplicação. Segundo tais premissas, cabia ao pintor e ao escultor a fidedignidade completa ao produto artístico, talhando-o à maneira de seu original, seja ele uma fonte divina ou natural.
A propósito de um pintor francês do barroco, Claude Lévi-Strauss ilustra bem esse sentido de representação como imitatio:
Sabe-se que Poussin gostava de moldar em cera; no início de sua carreira fazia-o como os antigos e para reproduzir em baixo-relevo partes de quadros dos grandes mestres. Várias testemunhas contam que, antes de iniciar um quadro, Poussin moldava estatuetas de cera. Dispunha-as sobre uma prancha nas atitudes correspondentes à cena que imaginava, vestia-as com papel úmido ou um tafetá fino e fazia as dobras por meio de um pequeno bastão pontudo. Com essa maquete à vista, ele começava a pintar. Furos nas paredes da caixa que encerrava o dispositivo lhe permitiam iluminá-lo por trás ou pelas laterais, controlar na dianteira a luz e verificar as sombras produzidas. Não resta dúvida de que ele também buscava colocar e deslocar as estatuetas para definir a composição da cena cujo modelo reduzido ele assim construía. (grifos meus, Olhar, escutar, ler, 1997, p. 13)
Após o Renascimento, o conceito de imitação assiste a deslocamentos sucessivos, durante o Barroco e o Iluminismo. No século XVIII, a arte aparece subsumida à natureza, porém com um espaço relativo concedido à figura do gênio. A concessão da primazia à subjetividade do criador e à autonomia da arte no Romantismo terá como corolário a ausência da mimesis na teorização artística. Em fins do Oitocentos, o Impressionismo refutará a representação da realidade na pintura como parâmetro a ser seguido, tal como assinalou Mallarmé em ensaio pouco conhecido. Esta posição será ampliada com a arte moderna, quando a ideia de sujeito condutor das representações será imputada aos scholars da arte acadêmica.
A dissociação contemporânea entre a imitatio e o solaridade do sujeito como realismo das representações suscitou uma reação a essas categorias no universo da literatura. Estatuiu-se o divórcio entre linguagem e mundo. O escritor cessou a busca por referências e significados no ambiente externo, acrisolando-se nas experiências linguísticas. Autores como Maurice Blanchot, analisado por Foucault, e Samuel Beckett exprimiam em suas obras ficcionais a opção pela interminável cadeia do significante. Na crítica literária, a superação da objetividade carecia de uma formulação inovadora da abordagem do texto. Nele, segundo Roland Barthes, o leitor não deveria adequar-se à visão correta do enredo, mas, sobretudo, fundar aquilo que estava sendo visto na narrativa.
É possível perceber que todas essas posições negativas a respeito da mimesis procedem de uma concepção de representação que salienta a semelhança como critério exclusivo de justaposição na arte. Entretanto, a reviravolta interpretativa feita pela leitura das obras capitais do pensamento moderno e pela admissão de um sujeito fraturado recoloca a mimesis na discussão teórica hodierna.
A mimesis não se compõe apenas de similitude, assim como não contém uma versão única da obra, oriunda da intenção do autor. O criador parte do mundo, porém não se encerra nele. A moldura sócio-histórica em que se enquadra o sujeito – as frames de que falava Erwin Goffman – é a contingência necessária para se ultrapassar a própria realidade. O conceito de mimesis traz consigo a ideia de incompletude, competindo ao espectador a tarefa de preenchê-la. É na dinâmica entre arte/realidade, semelhança/diferença, criação/recepção que a mimesis se atualiza.
Edição Enrique Shiguematu
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