Sujeito e Representação no Pensamento Moderno (I)
Por Bernardo Buarque de Hollanda
"Eu não pinto o ser, eu pinto a passagem…
Minha alma está sempre em aprendizagem e experiência".
Michel de Montaigne
Os termos sujeito e representação têm sido alvo de controvérsias no campo intelectual contemporâneo. Desde a voga do pós-estruturalismo na França e do desconstrucionismo nos Estados Unidos, a partir dos anos 1970, a suposta "morte do homem", ou "morte do autor", grassou naqueles meios acadêmicos. Com respaldo em Schopenhauer e Nietzsche, exacerbados por sua vez em Heidegger, tais pensadores propugnaram o fim da centralidade do sujeito e a supressão da linguagem mediadora realista, que se acreditava dotada de instrumentos suficientes para representar o mundo. A arte e a filosofia passaram a ser consideradas áreas de pensamento mais ousadas, ao passo que a ciência permanecia limitada pelos critérios da razão e da verdade.
Tal visão crítica contrapunha-se à tradição vigente no pensamento moderno, que exaltava a ciência, a educação e a moral de cariz iluminista. O pressuposto do sujeito solar era a capacidade de o ser humano, equipado de um aparato racional, dirigir de forma consciente as suas representações. Estas eram sempre objetivas, capazes de distinguir as hipóteses verdadeiras das falsas com clareza. A força desse corpo teórico perdurou até o século XX, apesar dos abalos sofridos com as duas grandes guerras (1914-1918 e 1939-1945).
O antagonismo entre a negação e a afirmação da onipotência do sujeito matinha, contudo, uma base comum. Tanto os que atacavam o homem central como uma ilusão quanto os que o consideravam positivamente partiam de interpretações semelhantes dos textos clássicos da modernidade. Em Descartes e Kant, estariam reconhecidas as linhas mestrado do sujeito uno centrado, cujo rigor metodológico abriria o horizonte para a explicação do mundo.
Entretanto, uma releitura acurada desses filósofos possibilita uma percepção diferenciada das origens do pensamento moderno. A fratura do sujeito, tão ligada pelos pós-estruturalistas a Schopenhauer e a Nietzsche, seja acentuando a dicotomia razão/vontade, seja frisando as ficções lógicas do discurso científico, podia ser localizada já nos próprios pensadores dos séculos XVII e XVIII. Uma outra questão pertinente aos intérpretes dos clássicos da modernidade e, em especial, à conferência de Heidegger de 1938, "O tempo da imagem e do mundo", coligido no livro Trilhas perdidas (Holzwege), de 1950, era a ausência da análise de Montaigne e de seus Ensaios, datado do final do século XVI, onde já se encontravam indicações de um sujeito fraturado.
Tal é o argumento central de Luiz Costa Lima em Mimesis – desafio ao pensamento (2000), que embasa o presente arrazoado. Nele, o pensador brasileiro atribui a René Descartes, na primeira metade do Setecentos, o início da soberania do sujeito na atividade do pensamento, por meio de sua faculdade lógica. O seu tratado mais conhecido, Discurso sobre o método (1637), contorna com astúcia a teologia e a metafísica, para introduzir um procedimento peculiar ao ser humano. Guiado pelo cogito, o homem apreende leis que regem a perfeição da natureza, com discernimento e positividade. Desta forma, Descartes articula o sujeito empírico ao mundo dos fenômenos, através da mediação de uma linguagem geométrico-matemática.
Embora a premissa acima seja plausível, além de a mais comumente aceita, a leitura descartiana adquire nova perspectiva quando se revela um outro escrito do filósofo francês, o Tratado das paixões (1649). Nele, o homem cartesiano apresenta também o seu lado negativo, fissurado, em que o espírito é aturdido pelas emoções, pelos desejos e pelas sensações animais. À clareza, precisão e retidão do cogito cartesiano, somam-se, ainda que relegadas, as agitações, confusões e obscuridades da alma. Logo, o sujeito solar guardaria dimensões menos auspiciosas em sua mente, que necessitariam ser refreadas.
Quanto a Kant, a identificação de um sujeito sob fratura no interior de suas formulações filosóficas também pode ser feita, embora o expoente do idealismo alemão mantenha distância em relação a Descartes. Em sua Crítica da razão pura (1781), mostra-se como o sujeito não é um dado substancial, nem uma entidade visível, e como o conhecimento é independente do eu particular. Mostra-se também de que maneira os objetos do entendimento, tampouco, são empíricos. O que explica o sujeito kantiano é a condição formal e lógica para o pensamento. Tal capacidade precisa operar sinteticamente através de uma série de etapas da intuição conectiva dos sentidos, até alcançar a unidade da consciência e o sujeito da apercepção transcendental.
A ideia convencional que se estabeleceu em torno de Kant defende a unidade formal do sujeito e, por conseguinte, o controle deste sobre as representações. Contudo, a reconsideração de sua trilogia crítica dá margem a uma outra via, que assinala um sujeito igualmente fragmentado. A diferença entre entendimento e razão seria a base para tal cisão. A razão consistiria no campo das questões gerais e abstratas que ultrapassam a possibilidade humana de extrair respostas cabais e definitivas. Já o entendimento seria o campo das questões mundanas e dos fenômenos sensíveis, em que o homem só poderia fornecer respostas parciais e provisórias.
(Continua na próxima quinzena)
Edição Enrique Shiguematu
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