O pintor e o cientista: sobre um ensaio de Diderot
Por Bernardo Buarque de Hollanda
"É nesse caos que ele mergulha seu pincel
e daí extrai a obra da criação…"
Ensaios sobre a pintura (1766), de Diderot, reeditado no Brasil pela Unicamp em 2013, vinte anos depois da primeira edição, enfeixa um total de oito capítulos. Estes abrangem uma diversidade de temas pictóricos – desenho, cor, composição, expressão, claro-escuro, arquitetura – e terminam com um "pequeno corolário do que se acabou de dizer". A despeito de sua variedade, o livro ensaístico apresenta uma assertiva em comum: a congruência entre a arte e a ciência encontra-se na natureza. Esta última, por sua vez, consiste num prodigioso universo relacional, que interliga seus feixes em um sistema harmônico totalizante.
Sem embargo, enquanto o cientista é capaz de apreender a verdade da natureza mediante o emprego da razão, o pintor mostra-se incapaz do mesmo feito. Ao admitir que o sol retratado na pintura não é o mesmo da natureza, Diderot intui a necessidade de um modelo de imitação diverso daquele envergado pela acepção clássica. Frente à cópia e à frialdade do Classicismo, o escritor francês realça a experiência viva e dinâmica da realidade:
"Amanhã, ide à taberna e vereis a verdadeira ação do homem enfurecido. Buscai as cenas públicas, nos jardins, nos mercados, nas casas, e obtereis ideias precisas sobre o movimento real das ações e da vida. Escutai, observai vossos companheiros discutindo; vede como é a própria disputa que, sem que se deem conta, determina a posição de seus membros. Examinai-os bem, e deplorareis a lição de vosso enfadonho professor e da imitação de vosso insosso modelo". (Campinas; 1ª edição, Papirus, 1993, p. 37)
A insuficiência do pintor ante a verdade alcançada pelo cientista não leva Diderot a abrir mão do paradigma da natureza. O filósofo setecentista reconhece o meio paisagístico como o único que fornece a noção de simetria, dando as bases para a projeção de arranjos cromáticos dotados de proporcionalidade na pintura. Afora isto, a seu juízo, restariam apenas as quimeras do imaginário, a desmesura da fantasia e a feiura do monstro, fonte da animalidade, não da humanidade. O reconhecimento da beleza era a justificativa da pintura e o seu avatar em face da ciência.
A certeza do encontro da fonte estética na natureza é reiterada várias vezes por Diderot:
"Sem dúvida, a floresta que me remete à origem do mundo é algo belo; sem dúvida, esse rochedo, imagem da constância e do tempo, é algo belo; sem dúvida, essas gotas de água transformadas pelos raios de sol, fragmentadas e decompostas em tantos diamantes rutilantes e líquidos, são algo belo; sem dúvida, o ruído, o fragor de um caudal que quebra o vasto silêncio da montanha e de sua solidão e causa em minha alma um abalo violento, um terror secreto, é algo belo!". (p. 144-145)
A identificação da beleza no sistema da natureza precisa ser retratada realisticamente pelo artista, a partir de um saber técnico prévio, advindo da relação de ensinamento e aprendizagem. Tal sabença não própria ao homem comum e reserva-se, segundo o entendimento do iluminista, àqueles indivíduos de caráter extraordinário.
Nota-se aí a síntese feita por Diderot entre a sua teoria da arte e a sua condição de crítico nos Salões de Paris. Ela ensejou o treinamento de uma observação artística capaz de dar relevo ao papel ativo do homem na incorporação e na expressão pictórica. O pintor absorve aspectos conscientes e inconscientes de seu olhar sobre o cotidiano, abrindo-se a seus efeitos e dando-lhes uma nova forma sensorial:
"Aquele que possui uma viva sensibilidade para a cor tem seus olhos fixos na tela; sua boca está entreaberta; ele ofega; sua paleta é a imagem do caos. É nesse caos que ele mergulha seu pincel e daí extrai a obra da criação, quer os pássaros e as nuanças de que se tinge sua plumagem, quer as flores e seu aveludado, quer as árvores e seus diferentes tons de verde, quer o azul do céu, quer o vapor da água que os embaça, quer os animais, quer seus pelos longos, quer as manchas variegadas de sua pele, quer o fogo com que seus olhos brilham. Ele levanta-se, afasta-se, fita de um relance sua obra; torna a sentar-se, e vereis nascer a carne, o tecido, o veludo, o adamascado, o tafetá, a musselina, o tecido rústico, a roupa doméstica, o forro grosseiro, vereis a pera amarela e madura cair da árvore e a uva verde presa à vide". (p. 46)
O nascimento da arte, mencionado acima pelo Autor, após um meticuloso e fatigante processo de observação dos elementos naturais, permite a elaboração de uma teoria da imitação que avança em relação à imitatio tradicional dos renascentistas. Ao escrever seus tratados em uma época de surgimento de um público apreciador e de uma crítica especializada, Diderot era aguilhoado a refletir e a desenvolver conceitos artísticos que se entrechocavam com a tradição e mesmo com a sua própria formação intelectual.
Entre avanços e recuos teóricos, a lição diderotiana, presente em livros como Oeuvres esthétiques, Voyage en Hollande e Da interpretação da natureza e outros escritos, sinaliza para um sujeito que, como o cientista, ainda não se desvencilhou do cânone da natureza, mas que, à diferença deste último, supre a lacuna da verdade com a representação da beleza, prodigalizada pelo gênio, inimitável e irreproduzível.
Edição Enrique Shiguematu
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