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GV CULT - Criatividade e Cultura

Os fluxos da grande mídia e a virtualização do sujeito

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29/09/2016 16h45

Hudinilson Jr., arquivos pessoais, os fluxos da grande mídia
e a virtualização do sujeito

Por Comunicação originalmente apresentada
em 2012, UFES – Poéticas da Criação – Vitória, ES
C.G.Hünninghausen, Ph.D.

RESUMO: Repletas de imagens em ambos os lados, as pranchas de Hudinilson Jr. se tornam um análogo orgânico daquela experiência hipertextual, não linear e, aparentemente, infinita que uma vez foi a "Internet".

A maior parte das pessoas esquece como quase tudo era antes da internet. Esquecemos, por exemplo, do esforço (físico) envolvido na busca, consumo e seleção da informação. Esquecemos, por exemplo, que –diferentemente dos espaços matemáticos– os espaços físicos destinados (em especial os destinados à informação) tinham não apenas capacidade limitada mas também obedeciam regras hierárquicas bem definidas.
"Gatekeepers" de toda sorte mantinham a informação relevante e em evidência, os mesmos também a organizavam para o consumo. Incompleta, dependente e estanque era, então e em grande parte, a tônica dessa informação que consumíamos. Imagens em cores e imagens em movimento recebiam tratamento diferenciado, especial, com templos próprios, construídos para sua exibição e consumo.
As pranchas do artista paulistano Hudinilson Jr. (que foram tema de uma mostra em fevereiro de 2012 na Galeria Jaqueline Martins em Pinheiros, São Paulo – Rua Dr.Virgílio de Carvalho Pinto, 74) nos mostram, hoje, que não apenas muito mudou. As pranchas também nos revelam importantes relações entre mundos: em permanente construção desde 1980, a obra traduz o esforço do artista em não esquecer. Como o Proust de um novo e mais moderno século em que o fluxo das imagens e da informação tomou, para o bem ou para o mal, o lugar central antes ocupado pelas palavras, Hudinilson Jr. busca não só o tempo perdido mas, através das suas colagens-arquivo ele quer nos fazer lembrar.

Álbuns com coleções de imagens, selecionadas, recortadas para servirem de lembrança eram um hábito comum. "Scrapbooks" ainda são uma prática corriqueira para muitas gerações de famílias. O que mudou foram os suportes para o ato de consumir informação, não ato em si. Se uma vez, as mais diversas obsessões (artistas de cinema, cães pastores alemães, por exemplo) figuravam em álbuns de recortes, encontrados em feiras de antiguidades ao ar livre, hoje, estes mesmos álbuns, reaparecem sob forma digital: instagram, pintrest, e facebook são ferramentas que em comum têm esta capacidade: agregar imagens para consumo posterior.

As pranchas de Hudinilson Jr., no entanto, apesar de terem pontos de contatos com esta prática, devem ser vistas como obra, arquivo das obssesões. As recordações das obsessões de uma civilização inteira, criadas a partir das obsessões erótico-sexuais de um indivíduo, o próprio artista. Diz-se que um fetiche acontece quando um desejo não pode ser experimentado diretamente. Talvez para Hudinilson Jr.

Hudinilson Jr. afirma que produz uma prancha, pelo menos, por dia, e isso desde 1980. Ele sabe o quanto o mundo é efêmero e a memória, imprecisa. Se hoje, toda informação parece estar permanentemente ao alcance da mão, alguns anos atrás, esquecer, não mais encontrar a informação que precisávamos ou tê-la apenas de forma parcial e distorcida, era praxe. Daí, a relevância destas pranchas. Elas são a memória física de uma geração, canonizada como arquivo, obra do artista. Hoje, mais de vinte anos depois de seu início, estas colagens-arquivo impressionam não apenas pelo conteúdo explícito (homens viris e falos são, em sua maior parte, o tema destas pranchas) mas pela quantidade. São muitas pranchas. Em entrevista à Thais Rivitti o artista afirma que só consegue se interessar por homens e, quando não está trepando, está selecionando as tais imagens para suas colagens. Assim, as pranchas se tornaram um imenso documento, prova das obsessões, vícios e interesses, primeiro, de um homem e, depois –uma vez que estas são imagens furtadas do fluxo da mídia impressa tradicional– das obsessões de uma civilização inteira. Nestas colagens-arquivo o corpo masculino é reproduzido à exaustão e falos agem como catalizador a desvendar a natureza, o lugar e a história do desejo sexual do artista e de uma sociedade afeita à satisfação imediata de seus desejos. Ao fazê-lo entretanto, ao separar e selecionar esta ou aquela imagem, Hudinilson Jr. nos oferece, em verdade, um mapa erótico do último século calcado nos recortes desses falos e corpos masculinos viris.

É interessante notar que, ao recortar, guardar e repetidamente colar estas imagens em ambos os lados dos papéis que compõem as pranchas o artista antecipa (na arte) um análogo da natureza hipertextual, não linear que hoje assume a internet. O que as pranchas de Hudinilson Jr. antecipam, em cerca de 20 anos, pela sua absoluta quantidade pela sua natureza não linear (que deve assim ser vista) se torna um recorte orgânico, palpável da experiência que a Internet oferece de forma virtual, matemática antes mesmo dela existir como tal.

Ao separar, selecionar e preservar esta imensa quantidade de imagens eróticas masculinas que, de outra forma, muito provavelmente, seriam descartadas, o artista transforma suas pranchas em suporte para a criação de uma matrix erótica antes mesmo dela existir como tal. Servindo-se do papel, da tesoura e da colagem como se estes fossem bits e bytes, transformando as imagens e as pranchas em banco de dados ou em "datacenter" de papel, o artista cria um imenso arquivo das transformações e dos interesses de uma sociedade obcecada com a satisfação imediata de desejos sexuais através da pornografia, por exemplo.

A criação e manutenção de um erotismo velado através de várias décadas, afinal estamos aqui trabalhando com imagens que remontam à década de 1980!

À medida em que este arquivo cresce, o artista formulou para si (e agora para nós também) não só um repositório-prótese para a memória de suas obsessões, mas também, um porto seguro para a memória de um fluxo homoerótico que antes não seria reconhecível, isto é, imagens que estariam dispersas e desconectadas na mídia. Assim, nesta obra, tanto um uma parte da natureza da grande mídia (jornais, revistas, livros e publicidade) é exposta e vem à tona subvertida, bem como um memento é posto à prova: Quem são, onde estarão e quanto teriam mudado estes homens retratados pela mídia de então e separados pelas pranchas de Hudinilson Jr? Alguns deles, nos diz o próprio artista, eram seus amigos e já morreram. Outros, conseguimos reconhecer sem grande esforço, outros, ainda, tiveram mesmo apenas seus 15 minutos de fama (Warhol) para, logo a seguir, desaparecer por completo. Não estivessem, agora, preservados em sua virilidade nesta obra, estariam perdidos para sempre.

Hudinilson Jr., que nunca se formou em artes tendo abandonado o curso por divergências intelectuais com uma colega, hoje curadora, da qual jocosamente faz questão não revelar seu nome, precisa ser considerado um autoditada. Hoje, o artista vive sozinho no apartamento localizado a duas quadras da Av.Paulista em São Paulo, que faz também as vezes de atelier. Cercado pelas suas próprias memórias, o lugar já foi transformado pelo artista em uma instalação/museu de si próprio e dos movimentos artísticos que integrou junto com os amigos, alguns falecidos.

Integrante crucial do "3nós3" que revolucionou as artes na écada de 70, ao cobrir e embalar com panos estátuas e bustos nas grandes avenidas e praças de SP, Hudinilson vive sozinho em seu próprio museu. "Xerox actions", outra obra provocativa do artista, existe hoje como documento de uma ação em que Hudinilson Jr. se permitiu interagir sexualmente com uma máquina de xeróx. Todas estas ações são marco da arte efêmera contemporânea brasileira.

Múltiplo, o artista também é responsável por uma série de "assemblages"– várias caixas que recebem objetos e imagens cuja inspiração pode ser encontrada tanto no artista norte-americano Joseph Cornell (1903-1972) ou no brasileiro Farnese de Andrade (1926-1996). A partir das associações inesperadas entre objetos de procedência diferente, nasce, entretanto, o apelo artístico: estes objetos tornam-se relicários do desejo e da sensualidade. O artista guarda nestas caixas lembranças de seus próprios desejos e encontros eróticos e, provavelmente, dos desejos de muitos de outros nós. As obras de Hudinilson utilizam-se do erotismo, do prazer e do êxtase também para observar, debater e criticar a moral e a política.

Mas estas caixas são outro papo.

Edição: Enrique Shiguematu
Carlos Guilherme Hünninghausen, Ph.D.
Nasceu Santa Maria – RS. Vive e trabalha entre Santa Maria, Porto Alegre, Florianópolis e São Paulo. Doutor em Literaturas de Língua Inglesa pela Universidade Federal de Santa Catarina, onde estudou as performances da artista norte-americana Laurie Anderson. Atua desde os anos 1990 como educador, fotógrafo, crítico e curador. Já publicou e apresentou seus trabalhos no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e em São Paulo. É curador da Galeria TATO, Pinheiros – SP onde realizou as exposições "Anatomias Distintas" (jan-2015), "De Velazquez a Bacon: o Patológico de Domenico Salas (out-2014), "O Fim da Violência" (nov-2013), "Oferta" (dez-2012) e "Ligações Perigosas" (ago-2012). Foi também assistente da galerista Jaqueline Martins (Virgílio de Carvalho, 74 – SP).

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.