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GV CULT - Criatividade e Cultura

Arte, ficção e interesses pessoais no mercado de artes Paulista

GVcult

24/09/2016 16h00

Por: Carlos Guilherme Hünninghausen, Ph.D.

Resumo:
Uma breve investigação acerca dos mecanismos, motivos e aspirações do "sempre emergente" mercado de artes da maior cidade brasileira, São Paulo.
Palavras-chave: mercado paulista de artes, performance, desempenho, relato, crítica.

"É mais fácil vender terrenos no céu
que obras de arte".
Anônimo

"Um dos princípios da arte,
consiste em não dar ao leitor a impressão
de que ele seria capaz de fazer o mesmo".
Honoré de Balzac

"And it reminded me of something in a book by Don DeLillo
about how terrorists are the only true artists left,
because they're the only ones who are still
capable of really surprising people".
Laurie Anderson

A última década da recente estabilidade econômica brasileira viu também o mercado de artes florescer. Em especial na maior cidade brasileira, São Paulo. Galerias pequenas e grandes surgem por diversos bairros da cidade oferecendo o que deveria ser um panorama da produção artística brasileira. Ao mesmo tempo em que esta estabilidade criou as condições para a expansão e uma maior visibilidade deste mercado, ao se visitar as galerias espalhadas pela maior e, talvez, a única cidade no país que se "orgulha" de ter um mercado de artes, nota-se um descompasso entre o que é apresentado nestas galerias, o que passa por arte, e as questões que circulam pela academia. No Brasil dos últimos 10 anos, poucas são as oportunidades para o mercado de artes oferecer uma tradução vigorosa destas questões. Foi-se o tempo em que Chelpa Ferro marcava a produção nacional. A primeira epígrafe que abre esse texto deve ser entendida tanto como uma piada quanto como uma revelação. Feita por um galerista paulista (que prefere não ser identificado), ela serve para ilustrar meu ponto de vista em relação à situação deste mercado. Se 2013 viu uma nova geração amadurecer, sair de seu torpor e ir às ruas reclamando uma nação que nunca sai do papel, talvez seja também a hora para galeristas, artistas e agentes da cultura saírem de seus nichos privilegiados em busca de uma arte cujos desdobramentos se dêem também no âmbito político ao invés de apenas continuarem a ocupar-se dos afetos pessoais, da sobrevivência própria e dos espaços privatizados que presidem hoje.

Desatrelar a arte de suas manifestações materiais foi a única resposta possível que artistas cansados de ver qualquer "novidade" imediatamente assimilada pelo mercado, isso ainda na década de 50, puderam dar: ideias no ar ao invés de objetos nas paredes. Com isso, entretanto, criaram-se também as condições para que muitos dos saberes produzidos pela arte fossem, ao longo desses anos, sendo jogados em uma vala comum: ou se tornam apropriações, "commodities" de outras áreas ou se tornam saberes cujo sentido original, se perdeu. Uma das características dos bens de consumo é tornar-se a cada dia mais "cultural". É fato: a habilidade para compreender ou pensar a arte sem sua prova material é um desafio permanente diante da imensa capacidade que as sociedades pós-industriais têm para criar objetos, bens de consumo e fantasias a partir destes. Faz-se necessário pensar a arte não nos termos de sua natureza estética mas sim a partir de seu funcionamento como comunicação, ato político e como valor econômico.

A arte é uma ideia e não depende da prova material para sobreviver. Há praticamente um século (se colocarmos como ponto de partida DADA) a arte tornou-se independente de sua prova material. Aceita esta premissa, a arte existe como um passe de mágica. Nem precisemos falar aqui da arte das cavernas, cujos sentidos atrelados ao ritual a torna inacessível a nós senão através de elaboradas ficções. Estas afirmações não somente são capazes de proporcionar revelações importantes mas, também, modificar nossa relação com a arte. É assim, por exemplo, que Joseph Beuys, ao descascar batatas com sua família, declarou-se o único, o último, ou o maior artista vivo e, é assim que ele também decretou a morte da arte (tal qual a conhecíamos e concebíamos) quando exigiu uma resposta do próprio Duchamp (resposta esta que nunca veio).

Isto é, a arte contemporânea adquiriu o status de um passe de mágica e não mais depende do objeto para manifestar e "provar" suas intenções, mas a longa história que a atrela ao objeto, aos materiais e à habilidade, continua a operar de maneira a manter o mercado das artes em funcionamento. Isto é, se "pagar" por uma ideia parece uma contradição, é no âmago desta contradição que o mercado das artes, precisa sobreviver. Assim, no que diz respeito ao mercado de artes paulista, algumas de suas instituições e muitos de seus agentes, os objetos de culto continuam a reinar soberanos. Entretanto, um passe de mágica não somente libera a arte de seus alicerces materiais, como também adiciona contornos conceituais ao fomentar a participação na experiência como crucial à sua definição. A armadilha se dá quando tentamos reverter a mágica e recriar os objetos que desapareceram pela mágica. Assim, realmente parece que é mesmo mais fácil vender "terrenos no céu", que "arte."

É bem verdade que passes de mágica não fazem os objetos desaparecerem, fazem apenas dúvidas aparecer. Foram passes de mágica que fizeram com que bens de consumo e objetos culturais se misturassem de maneira tão intensa que tormou-se difícil entender o status particular de cada um. No início deste novo século e com tantos novos desafios acerca do destino, permanência e sobrevivência da humanidade no planeta sendo impostos não apenas frente aos excessos criados por nossas sociedades mas também pelos limites físicos encontrados, nos parece que grande parte da mágica da arte tornou-se óbvia ou irrelevante e seus sentidos, desgastados pela repetição.

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Fig.1 Joseph Beuys "Hiermit trete Ich aus der Kunst aus" (com isso abandono a arte), 1985.

Outra grande confusão em relação à arte diz respeito à produção cultural que se inicia com o desenvolvimento das (então novas) tecnologias de reprodução: até hoje se lamenta a perda da "aura" (Benjamin) apesar desta não mais fazer o sentido que fazia em outros tempos. Isto é, em uma época (como sugere a nossa) comandada pela reprodução digital que subverte a função e a característica do original nem mesmo a arte escapa. Por exemplo, a literatura (como forma de arte) começou a ser desafiada ainda no século XIX pelo jornalismo. A arquitetura, pela engenharia; o mesmo acontecendo com tantas outras áreas até chegarmos à própria ideia da arte. Mantidos artificialmente em separado, os conhecimentos produzidos pelas esferas cultural e econômica estão, entretanto, em curso de colisão direta já há algum tempo. A arte parece desafiada a sobreviver tentando lidar ou tentando fugir destes dilemas. Keith Haring, por exemplo, considerava 'real' aquele mundo que se encontra longe do mundo das artes, seja ele então aquele representado pelo mercado, pelo mundo das revistas ou das coisas. Assim, lição aprendida das páginas da filosofia de Andy Warhol, para falar sobre esta 'realidade', é preciso usar a linguagem por ela criada.

Ainda que uma das características da arte seja sua imensa capacidade para reinventar-se, como linguagem, como discurso e como produto através de metamorfoses múltiplas, a partir destes enigmas, jogos e, por fim, verdadeiras armadilhas cuja função primordial está em (constantemente) nos lembrar da aleatoriedade (simbólica) que existe no centro da existência humana, o universo da arte, entretanto, parece ter perdido, ao longo dos anos, esta batalha para a indústria que não apenas se encarregou de oferecer produtos culturais de maneira mais eficiente, como também produzir bem estar e conhecimento em escala suficientemente abrangente.

Continuamente desafiada por estes novos campos do conhecimento (que se desenvolveram muito como conseqüência da escala industrial), mas que produzem resultados semelhantes (antes exclusivos do saber artístico), a arte se torna apenas mais uma engrenagem daquela máquina que produz a "liberdade" necessária para a roda da economia neo-liberal desenvolver-se em consenso (Chomsky, 1988).

Mesmo que grande parte do valor atribuído à arte seja, essencialmente, simbólico, ainda assim é preciso levar algo para casa que nos lembre e justifique a transação. A existência da ideia só é suficiente diante da prova material. Como se a prova material da existência de uma ideia, este pilar da cultura ocidental, cuja expressão também se encontra neste texto, no tipo de evento que o faz circular e na sua forma final, em papel ou eletrônica, simplesmente não pudesse ser relevada. Assim, tanto a arte efêmera quanto as performances voláteis cuja materialidade, pressupõem-se, escapa às tecnologias (fotografia, vídeo) hoje disponíveis e sancionadas para sua "captura" e documentação, se tornam materialmente menos voláteis e sujeitas aos mesmos mecanismos de outras tantas obras "menos" radicais.

Isto é, desde que a mágica foi parcialmente revelada, os próprios artistas, críticos e instituições se encarregaram de criar e de manter em operação um complexo e hermético sistema de proteção deste segredo: existe uma engrenagem que põe em movimento uma hierarquia de autenticações longa e exaustiva cujas regras são praticamente inacessíveis mas que, nem por isso, se torna menos vulnerável. A vulnerabilidade, pelo contrário, se dá no centro do tecido social, nas relações interpessoais de poder que a autoridade articula a aprtir destas instituições. Esta engrenagem avalia, valida, limita e autentica sua própria produção ao mesmo tempo em que ideias sobre o que é ou o que não é arte proliferam e circulam pela mídia de maneira a confundir. Isto é, enquanto inúmeros produtos, todos voltados ao consumo, apresentam uma faceta estética e competem para participar da economia neo-liberal, a arte se diz liberada deste sistema sem, verdadeiramente, folgar em sê-lo. Reinventar-se requer energia. Energia que nenhum sistema consegue recuperar totalmente. Isto é, como na termo-dinâmica, se no mundo das artes paulista, existe entropia, ela só existe pois o sistema é artificialmente "fechado".

Em especial, para um mercado de artes periférico e "pequeno" como o paulista, depender do objeto não de maneira circunstancial mas como pedra fundamental de toda a sua atividade significa não somente fazer-se refratário às questões que circulam pela arte mas também suprí-lo com toda as sorte de fetiches visuais possíveis (eu explico meu termo a seguir). De fato, não interessar-se por questões que vão além de sua imediata sobrevivência parece ser o tom. Se a arte é aquele espaço, aquele lugar em que as linguagens são postas à prova e se desfazem com a mesma rapidez com a qual são criadas … nos parece que o mercado de arte paulista reflete esta situação apenas através da rapidez com a qual as galerias particulares nascem e morrem pelas ruas da cidade e artistas são lançados no mercado mas nunca, propriamente, nas obras expostas. Jardins, Pinheiros e Barra Funda são os palcos principais dessas batalhas travadas atrás de portas fechadas, através de intermináveis conversas telefônicas e pelo espaço matemático da internet.

A grande questão que se coloca aqui é quais são os métodos utilizados para esta operação. É como se este mercado, falsamente cosmopolita, estivesse lotado de especuladores cuja validade e autenticidade são sancionadas por instituições pouco transparentes e cuja inspiração é claramente coronelista. Inúmeras são as instâncias em que se vê pouco o mérito de determinada obra mas muitos afetos pessoais em operação. Alie-se a isso modos particulares de inclusão social digital e a importância que o marketing adquiriu em nossa sociedade essencialmente pós-tudo e temos uma imagem bastante complexa mas nada amigável das atividades ligadas à arte na maior cidade do país.

Em São Paulo, o mercado das artes é dominado por um punhado de Galerias e tendências que parecem mais preocupados com sua própria sobrevivência que com a exploraração genuína de limites: arte, mercado e indústria, são temas que não convivem bem no mercado de artes paulista. Como forma de justificar suas próprias limitações este mercado se protege de qualquer atividade que possa desestabilizá-lo através da defesa sumária de seus interesses. Seja através de formas pouco disfarçadas de afetos coronelistas, seja por apresentar obras que, por sua forma, produção e distribuição se assemelham aos produtos serializados da indústria da cultura, sem, entretanto, perder o status (mantidos por estas próprias instituições) de "arte". Enfim, uma ficção … tida como perfeita.

Assim, os inúmeros mecanismos que deveriam propor o reconhecimeno da arte como experiência, continuam justamente a desautorizar qualquer tipo de arte efêmera, incapaz de ser "levada para casa". Liberada, tanto da habilidade quanto dos materiais escassos e especiais que fizeram sua história, a arte, parece ter-se tornado o reino do acaso. Objetos encontrados, atos e eventos inusitados fazem hoje parte de seu vocabulário tanto quanto os objetos que fizeram sua história.

Para não ficar na periferia de outras tantas formas do saber, uma das maneiras que a arte contemporânea encontrou (desde Duchamp) para tentar manter seu status quo foi a de utilizar-se dos fetiches visuais. Fetiches visuais são jogos, brincadeiras com objetos e relações curiosas ou impossíveis de se encontrar no mundo físico (ou pelo menos, geograficamente restritas) mas que fazem hoje parte do arcabouço básico da chamada arte contemporânea. Para mim, uma espécie de surrealismo barato, pasteurizado e cuja validade (sua importância como linguagem) já se esgotou de há muito. Bons exemplos podem ser encontrados, no Brasil, em grande parte da obra de Nino Cais e, na Europa, nas fotografias de Miles Aldridge.

Em grande parte, resultado da propagação da idéia dos ready-mades de Duchamp, estes, em sua grande maioria perderam, por exaustão e repetição, a capacidade de comentar acerca da realidade e conseguem apenas surpreender (mas apenas por instantes) justo aquele espectador incauto, periférico que está interessado (e tem o dinheiro para isso) em preencher com alguma peça "única" sua sala de estar, quarto ou casa de praia desde que essa mesma não se deteriore, não cheire mal, nem cause um estranhamento muito intenso ou duradouro. Isto é, seja um elemento palatável e, ao mesmo tempo, demonstre o poder de compra do seu possuidor. Seu status hoje, é parecido com o de um relógio de ouro, feito à mão, de um carro esporte artesanal de 500cv, mas não mais com uma obra de arte.

Algumas facetas do mercado das artes se especializou não apenas em criar arte que se enquadre nesta categoria, como também comercializá-la e, em uma lógica perversa e às avessas, impor suas definições às próprias instituições que hoje (e em sua maioria) se recusam aceitar obras que possam se deteriorar (para mais informações sobre esta questão ver a obra de Hermann Nitsch). Assim, temos uma enxurrada de composições e aproximações que resultam apenas em enigmas visuais decorativos: obras que nascem domadas mas cuja vitalidade e validade são mínimas, quase não ultrapassando os limites herméticos dos cubos brancos onde são primeiramente expostas e encontram um terreno fértil e platéias ávidas. Assim, por exemplo, são os retratos em que se escondem ou se trocam as cabeças por outras "formas"; peças de um quebra-cabeça visual que opera apenas no âmbito das salas de exposição, mas que perde sua força em direta proporção à distância com que se encontram destas.

Apesar de altamente desregulado, o mercado de arte continua sendo, por excelência, um mercado do gosto. Sendo assim, é pelo gosto, que aqui deveria significar conhecimento, que o mesmo irá se definir e definir ao seu público. Aos mercados cabe a tarefa definir a resposta de seus colecionadores. A repercussão na mídia é um caso a parte: tanto pode ser dar porque algumas das pessoas envolvidas estabelecem relações de amizade com outras, como, uma vez que essa máquina tenha sido posta em movimento, pela "qualidade" de um trabalho. Normalmente qualidade e repercussão não andam juntas mas sim dependem uma da outra.

O que proponho a seguir é um possível mapa de categorização dos tipos de Galerias Paulistas deliberadamente simples. Todo tipo de categorização ou mapa tenta estabilizar algo que não pode ser estabilizado e, ao fim, revela muito mais da própria estrutura ou das referências de quem o escreve. Há que observar que mais interessantes são os limites entre as categorias sugeridas, aquele espaço não mapeado, marcado pelo ínterim, do que a tipologia em si: isto é, o resultado mais interessante se dá ao observarmos o que pode acontecer no espaço entre o A e o B da classificação proposta que na classificação em si própria. Os limites entre estas galerias é sempre cinza e, portanto, fluído. O possível interesse nessa tipologia se dá apenas de modo a tentar organizar algo que se encontra sempre no limite da emergência e que, portanto, se altera, substancial e rapidamente, sem qualquer aviso prévio.

Galerias AA
Arte é um negócio de e para ricos. Assim, ter participação ou estar próximo destes, pode caracterizar este perfil de galeria. Afinal, este é o consumidor que, a rigor, pode comprar "merda enlatada". O tipo de arte apresentada, em sua maior parte, é irrelevante. Obras que em uma outra galeria seriam, decorativas ou meramente ruins, se tornam sucesso de crítica e são "vistas como relevantes" uma vez que ocupem os espaços de uma galeria "AA".

Estas galerias preferem apresentar arte contemporânea ou arte moderna, sempre os clássicos do cânone artístico ou do cânone em formação. Curiosamente, estas galerias fazem parte do ciclo que produz o próprio cânone. Por excelência, possuem lastro econômico próprio ou, por relação, possuem demanda, isto é compradores certos. Sobrevivem anos a fio, quase sempre fazendo a primeira página do "caderno de cultura". Por pertencerem a este público restrito, ou por suas relações com ele, podem aparentar sobreviver sem vender muito e serem "experimentais" (nas dimensões, nos materiais), isto é, gastarem muito na produção de seus artistas. Neste caso, são claros exemplos de lavagem de dinheiro, uma vez que poucos têm exatamente a ideia dos preços e os leilões servem meramente para disfarçá-los. A demanda e os contatos fazem com que exponham o que bem quiserem. Aqui tanto faz: apresentam os clássicos ou criam fetiches visuais, dá no mesmo. Possuem apoios e patrocínios variados, muitos deles conseguidos através de leis de incentivo fiscal, leia-se contatos próximos com indivíduos cujo poder em aprovar ou não tais projetos, é real.

Galerias AB
Logicamente, se encontram um pouco abaixo das galerias AA, seja pelo experimentalismo, pela falta dos contatos ($$) mais apropriados no meio, idealismo ou inexperiência de seus fundadores e artistas. Estão sempre se movendo. Vez que outra, acabam ingressando no mercado AA, ou sendo rebaixadas, quando uma crise financeira as afeta de maneira contínua. É claro, a pressão feita pelo próprio mercado das galerias AA que, primariamente, teme perder mesmo parte de seu espaço privilegiado, leia-se, ter seus tolos enganados por outros negociantes, também as afeta. Existe um lastro econômico que lhes permite funcionar com conforto e esta é sua marca maior. São especialistas em criar os tais fetiches visuais caros e bem acabados. Sua importância é relativa e podem trabalhar às escuras, isto é, permanecer anos em atividade sem aparecer, uma vez fechadas suas portas para o público.

Galerias BB
Representam "o meio do caminho". Podem ou não possuir lastro econômico, isto é, dependerão das vendas para se manterem no jogo.
Vendem arte contemporânea e, ocasionalmente, um que outro clássico do cânone vai parar em suas mãos. Precisam e se esforçam para subir de categoria, mas lhes falta os recursos, os contatos e o pessoal adequado, uma vez que não podem pagar por todos estes. Dependem, primariamente, do conhecimento adquirido através de uma paixão genuína (?) pelas artes. Leia-se: não podem pagar para ingressar no mundo das galerias AA, mas apostam alto no seu ingresso no mesmo. Sofrem pressão clara de todos os lados. Aqui, poderia-se dizer, o jogo se torna quase uma armadilha da paixão e, muitas vezes, representantes destas galerias caem nas armadilhas preparadas pelos mais antigos ou mais espertos no jogo. Talvez sejam as galerias mais autênticas ainda possíveis neste mercado, uma vez que são marcadas também pela ingenuidade. O lastro econômico que lhes falta é substituído por investimentos em acessorias de imprensa que funcionam a base de "jabá". Tanto a falta de demanda quanto de contatos certos, dependendo da situação do mercado e das vendas, podem não só facilmente rebaixá-las mas fazê-las, simplesmente, desaparecer. Tornam-se C, isto é, são forçadas a desaparecer por completo e seu catálogo de artistas, que muitas vezes inclui boas surpresas, acaba incorporado pelas galerias AA. Suas mostras e exposições carecem da estrutura que muitas vezes se torna a atração principal de uma mostra em galeria AA, AB. Isto é, por falta de recursos, muitas exposições sequer decolam. Some-se a isso uma mistura de artistas e tendências e temos aí uma situação limite mas, igualmente, constrangedora.

Galerias BC
São lojas.
Ainda que organizadas em torno de obras de arte, não fazem questão de esconder que estão ali para vender. E nem mesmo se preocupam em não demonstrar isso deixando claro que suas obras devem ir "para as paredes", combinar com o sofá. Seus preços e pagamentos podem ser divididos (aliás não uma característica, mas uma prática comum entre todas as categorias aqui alinhadas). Exibem edições e têm preços módicos em formatos adequados às paredes das habitações da cidade. O gosto aqui, mais que duvidoso, torna-se uma questão de personalidade. Trabalham principalmente com arte decorativa. Estas galerias podem incluir alguns artistas importantes mas que já não mais participam do "circuito" das artes em instituições e museus e viram seus preços despencar por terem se tornado clichês visuais, saído de moda ou terem perdido seus afetos no mercado. Sobrevivência aqui é o lema. Morrem e nascem com a mesma velocidade das outras, mas são condicionadas ao proprietário, muitas vezes ele mesmo um pequeno "colecionador".

É preciso falar? Representam o denominador comum mais baixo em relação à arte e sua compreensão. Fazem-se valer de clichês e estereótipos culturais de maneira ampla. Sequer poderiam ser classificadas como galerias e, por isso mesmo, são descaradamente oportunistas. É raríssimo ver algum artista cuja obra possa se tornar importante começar por elas. É raríssimo perceber qualquer elemento relevante em suas manifestações. Aqui incluem-se, portanto em uma classificação guarda-chuva, uma interminável sequência de "arte" cujo sentido já se desfez ao longo da história.

Palavras em busca de uma conclusão

Seja pela sua própria natureza, seja pelo seu conteúdo, este texto não é um texto acabado, mas uma provocação. Sua premissa é, então, falha em sua origem e quase perde o sentido enquanto eu mesmo a tento controlar. Tendo observado (de tão perto quanto me foi permitido) os meandros deste mercado me pareceu necessária uma resposta, ainda que incompleta. Optei, também, por retirar deste texto, quase todas as referências e exemplos (artistas, obras e galerias em si) que nortearam minha escrita (deixando apenas duas) como uma forma de proteção. Enquanto escrevo, sei que novas formas, ligações e afetos estão sendo refeitos a desfazer ou a desmentir o que tento explorar logo acima.

Se existe uma gigantesca falta de compreensão (ou mesmo empatia) por parte do público (que resiste sequer pensar a arte como experiência ou como ato político), essa resistência não é gratuita, muito menos natural. Ela existe e resiste por conta da associação entre a arte, seus materiais, o mercado e as instituições necessárias à sua manutenção. A natureza desta associação não se desfaz nem se transforma quando artistas, galerias, mercado e instituições artísticas têm visão curta e imediatista, isto é, fazem o possível para mantê-la o mais intacta possível com vistas à sua própria sobrevivência. Nesta equação, todos são perdedores.

Posso ilustrar meu ponto de vista usando duas estéticas muito bem reconhecidas. As escolas Surrealista e Impressionista. Tais movimentos nos ajudam a entender tanto a relação entre arte e conhecimento, bem como a subseqüente perda de sua relevância, o fim do "choque do novo" e a morte da arte através da criação e manutenção de fetiches visuais (termo que tento brevemente explicar alguns parágrafos acima).

Apesar de já terem esgotado seu vocabulário e, por assim dizer, terem se tornado estereótipos culturais, obras destes períodos (ou que os simulem com sucesso em pelo menos algum de seus aspectos) continuam a suscitar adoração e a comandar altos preços. Uma das razões para isso é a própria história: estes foram os primeiros movimentos a materializar certas relações cognitivas que, por assim dizer, dificilmente poderiam ser expressas de outra maneira. Uma segunda razão pode ser a repetição: a familiaridade com estas estéticas as torna imensamente palatáveis e populares para um grande número de pessoas. Assim, grande parte das obras que hoje circulam pelo mercado são apenas reapropriações de períodos que já se tornaram "historicamente importantes". Por exemplo, os Surrealistas, que incorporaram e tornaram palatável Freud e o inconsciente, reaparecem via de regra como base para inúmeras novas obras numa sucessão interminável de combinações. Enquanto na pintura, traços Impressionistas, Expressionistas ou mesmo Cubistas, reaparecem como praga que não se consegue extinguir. Um dos problemas está justo ao admitirmos que tanto estes conhecimentos, quanto a experiência associada a eles, diante das novas teorias, conceitos e ciência, pouco ainda tem a dizer ou revelar sobre o mundo. Isto é, o problema está em manter-se intacta nossa relação com estas obras para além do patamar histórico através da repetição exaustiva de seus preceitos. O problema, em minha opinião, acontece quando clichês culturais são preservados de maneira a negar espaço. Isto é, ao serem assimilados pela cultura, estes movimentos e suas obras tomam o lugar de outros saberes que estéticas ainda em desenvolvimento não conseguiram estabilizar nem comunicar (de modo eficaz). Assim, uma dezena de linguagens já assimiladas e popularizadas continuam a circular pelo tecido social tornando, senão acessível pelo menos mais visível, a repetição de experiências cuja vitalidade, essencialmente, já cessou de existir. O mercado se alimenta desta situação. Em resumo, diante do excesso e da repetição, a arte deixa de desempenhar um de seus papéis primordiais e sofre uma morte parcial então. Se é impossível desvencilhar a ordem da cultura da ordem da economia, que pelo menos se perceba que a lógica do capital é sempre perversa. No Brasil esta logica se torna ainda mais perversa ao impedir que obras públicas (cujas linguagens representem atos políticos) consigam estabelecer-se.

Por fim, apenas posso desejar que, em um futuro próximo, possamos ver obras de arte de cunho político e público (de outra natureza que a das manifestações que tomaram conta do país) se tornarem menos uma utopia ou ficção e mais uma presença física em nosso país. E, assim, revelo meus reais interesses e adesões.

Edição: Enrique Shiguematu

Carlos Guilherme Hünninghausen, Ph.D.

Nasceu Santa Maria – RS. Vive e trabalha entre Santa Maria, Porto Alegre, Florianópolis e São Paulo. Doutor em Literaturas de Língua Inglesa pela Universidade Federal de Santa Catarina, onde estudou as performances da artista norte-americana Laurie Anderson. Atua desde os anos 1990 como educador, fotógrafo, crítico e curador. Já publicou e apresentou seus trabalhos no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e em São Paulo. É curador da Galeria TATO, Pinheiros – SP onde realizou as exposições "Anatomias Distintas" (jan-2015), "De Velazquez a Bacon: o Patológico de Domenico Salas (out-2014), "O Fim da Violência" (nov-2013), "Oferta" (dez-2012) e "Ligações Perigosas" (ago-2012). Foi também assistente da galerista Jaqueline Martins (Virgílio de Carvalho, 74 – SP).

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Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.