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GV CULT - Criatividade e Cultura

Por que (é irrelevante) entender a arte do nosso tempo? (Vá às compras).

GVcult

21/09/2016 15h55

PorC.G.Hünninghausen, Ph.D.

"…originais trazem consigo sua aura anexada."

A passagem do tempo se encarrega de jogar uma parte considerável dos saberes produzidos pela arte em valas comuns: as interações do conhecimento produzido pelas suas vanguardas, o novo, é apropriado, vira "commodity" e passa a ser utilizado por áreas afins (design, entretenimento). Uma espécie de canibalismo, movimento em cascata ou, apenas desenvolvimento "natural": o desconhecido e o interessante, torna-se banal. Territórios pouco ou não mapeados são lenta, mas vorazmente, difundidos até seus saberes originais se perderem, ou terem sua relevância distorcida. A velocidade particular destes processos, que depende da natureza e da tecnologia da comunicação em voga, se alterou em muito nos últimos anos. A revolução digital, para a qual, um original já é sempre, cópia, tomou de assalto essas relações e, parece, nada é como antes. Não há nada que se possa fazer.

Desafiada a sobreviver tentando fugir deste dilema (sua própria morte) a arte contemporânea encontra um único refúgio: manter-se artificialmente (viva, pujante?) através de suas instituições. Ao transformar-se a ideia de arte experimenta ondas sucessivas de instabilidade que colocam sua própria natureza permanentemente em questão.

Will Gompertz afirma: a globalização parece não apenas ser o que de pior pode acontecer com a arte mas, finalmente poderá representar sua morte. Morte esta já preconizada Hegel ainda em suas últimas palestras no inverno de 1828-1829 e também identificada por Arthur C. Danto em meados dos anos 80 do século XX como tendo ocorrido na década de 60. O risco é entendermos ao que estes autores se referem como a morte da arte: tornar-se qualquer –outra– coisa, menos arte. Hegel, explica Danto, teria intuido sobre o ´fim´ da arte como verdade.

Pulverização

Não existe mais um cenário, mas cenários. Interligáveis. E as ferramentas que nos ajudavam a colocar em ordem, catalogar, hierarquizar, toda sorte de movimentos estéticos de outrora, se coloca agora no chão, incapaz de fornecer os elementos necessários à sua própria definição e subsequente, salvação.

Se uma das características da arte é justamente avançar a cognição humana…como podemos entender o papel da explosão estética dos dias de hoje? Quais funções o imenso contingente de atores desta área ainda têm a dizer sobre a arte e seu papel nas sociedades atuais que vá além da manutenção de seus próprios (frágeis) alicerces.

Faz-se necessário pensar a arte não mais nos termos de sua natureza estética mas a partir de seu funcionamento como comunicação e como parte integral da engrenagem da economia contemporânea.

Uma época (como sugere a nossa) em que a reprodução digital tanto subverte quanto desmistifica a função e a característica daquilo que é original ou único, nem mesmo a arte escapa.

Mas isso, não necessariamente, é ruim. Apenas estamos dando ênfase para uma perspectiva.

Um passo além

Quero ilustrar meu ponto de vista usando dois movimentos bem conhecidos: Surrealismo e Impressionismo. Tais movimentos nos ajudam a entender tanto a relação entre arte e conhecimento, bem como a subsequente perda de sua relevância inicial, num movimento que pode ser chamado o fim do "choque do novo". Isto é, as relações explicitadas por obras destes movimentos, são assimiladas e sua linguagem, seu vocabulário torna-se uma espécie de bem comum. Algo que lentamente começa a fazer parte da cultura humana.

Apesar de já terem esgotado suas possibilidades estéticas, vocabulário e, por assim dizer, "prazo de validade", obras destes períodos continuam a suscitar adoração e a comandar altos preços. Uma das razões para isto é a própria história: originais trazem consigo sua aura anexada. Tanto o Surrealismo quanto o Impressionismo (mas não apenas estes dois movimentos) foram os primeiros movimentos a materializar relações cognitivas ainda em teste e, por assim dizer, grande parte destas obras se tornam "importantes" ao explicitar visualmente relações antes inéditas.

Os Surrealistas incorporam Freud e o inconsciente enquanto que os Impressionistas incluem em suas telas a passagem do tempo através de subsequentes mudanças na luz do dia.

Apenas por esta única razão obras originais destes períodos já justificariam seus altos "valores de mercado". São monumentos à uma ideia de humanidade que está próxima de desaparecer.

Representam valores intrínsecos a uma época em que ciência e mágica ainda andavam de mãos dadas e muito ainda existia a ser mapeado na escuridão. Isto é, obras destes períodos se inserem na história da própria humanidade porque são representantes iniciais destas relações em operação na arte, sua escassez material comprova também sua relevância.

Hoje, a situação é radicalmente diferente, senão inversa.

Nada parece escapar dos mapas que se tornaram maiores que o próprio território, como já afirmam Borges e Baudrillard. Há, por um lado, um excesso de saber e fazer artístico que não mais prece comportar avanços cognitivos.

A arte torna-se apenas mais uma das tantas engrenagens que pertencem ao motor da economia. Suas "descobertas", seus exemplos e obras, meros acessórios do playground de capitais que atravessa o mundo.

Por outro lado, um excesso de zelo em relação ao conhecimento que o digital subverte de maneiras ainda não completamente inteligíveis por nossa experiência se faz necessário, por outro…nos mantemos agarrados à ideias mortas.

Ideias, enquanto novas, estão sujeitas ao escrutínio de uma crítica que, em sua maior parte, não sabe o que está experimentando mas atua por aproximação.

Certamente, também a arte não escapa deste mapa. Circulando na sociedade ocidental desde então tais obras contribuem para avançar a percepção ao mesmo tempo em que perdem, a cada novo contato, um pouco da sua força original até o ponto em que se tornam clichês culturais a serviço da economia. Um mercado cuja natureza parece ser, especialmente, a de proteger e propagar a si próprio. Grande parte da produção contemporânea de arte parece pertencer a esta categoria: são derivativas. Neo Dada por excelência.

Compare-se a experiência de ouvir Mozart (ou Edgar Varèse) em sua própria época e em uma sala de concerto à experiência de ouví-los hoje, através de uma reprodução digital em um supermercado ou, experiência máxima do presente, através de fones de ouvido seja enquanto se viaja no metrô ou mesmo atravessando as fronteiras entre países. A repetição, a reiteração, embora necessária, transforma e tende a esgotar o original. Uma segunda razão para a exaustão do original pode ser assim expressa: nossa obsessão com a comunicação, a transmissão da experiência, se dá, primeiramente, através da imitação e da repetição. Ao se tornarem clichês culturais, isto é, serem assimilados pela cultura, como comunicação, produto ou como valor de mercado, artefatos culturais, estes movimentos, suas obras e o conhecimento associados à elas, por exemplo, toma o lugar de saberes que dificilmente poderiam ser expressos de outra maneira. Tornam-se ícones, resumos, equações de operações cognitivas complexas. Aqui está um dos problemas: a quem interessa manter em circulação tais obras? Enquanto inúmeros produtos de consumo apresentam uma faceta estética inusitada e, hoje em dia, competem para participar da economia pós-industrial em grande escala, a arte, parece ter-se tornado uma brincadeira, um passatempo … Mas este também em grande escala. Vide a explosão de feiras e bienais ao redor do planeta. É bem verdade, não mais aquela brincadeira apenas para ricos mas um parque de diversões alimentado pela necessidade de experimentar-se a arte contemporânea "enquanto ela acontece". Esqueceu-se de seu poder transformador. Esqueceu-se de sua função original em relação à humanidade. E isso, como eu disse, não necessariamente é ruim, apenas temos um novo eixo de interesses pautando as sociedades contemporâneas e ainda não exatamente sabemos como entendê-lo ou dominá-lo.

 Edição      Enrique Shiguematu

 

Carlos Guilherme Hünninghausen, Ph.D.
Nasceu Santa Maria – RS. Vive e trabalha entre Santa Maria, Porto Alegre, Florianópolis e São Paulo. Doutor em Literaturas de Língua Inglesa pela Universidade Federal de Santa Catarina, onde estudou as performances da artista norte-americana Laurie Anderson. Atua desde os anos 1990 como educador, fotógrafo, crítico e curador. Já publicou e apresentou seus trabalhos no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e em São Paulo. É curador da Galeria TATO, Pinheiros – SP onde realizou as exposições "Anatomias Distintas" (jan-2015), "De Velazquez a Bacon: o Patológico de Domenico Salas (out-2014), "O Fim da Violência" (nov-2013), "Oferta" (dez-2012) e "Ligações Perigosas" (ago-2012). Foi também assistente da galerista Jaqueline Martins (Virgílio de Carvalho, 74 – SP).

Referências:
BAUDRILLARD, Jean. A Sociedade de Consumo, Lisboa, Edições 70, 2010.

BAUDRILLARD, Jean. O Sistema dos objetos, São Paulo, Perspectiva, 2009.

BASKHARAN, Lakshimi. Designs of the times: using key movements and styles for contemporary design. Mies: Rotovision, 2005.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida, ZAHAR, Rio de Janeiro, 2000.

BERMAN, Marshall. Tudo que é Sólido Desmancha no Ar, São Paulo, Cia das Letras, 2005.

CRITICAL ART ENSEMBLE. Distúrbio Eletrônico. São Paulo, Conrad Livros, 2001.

DANTO, Arthur Coleman (1998). After the end of art: contemporary art and the pale of history. Princeton UP.

DEBORD, Guy. (1967) A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro, Ed. Contraponto, 1985.

De MASI, Domenico. A Sociedade Pós-industrial, São Paulo, SENAC, 2003.

GARCÍA CANCLINI, N. Consumidores e cidadãos. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 6ª. Ed., 2006 (1995).

GRAHAM-DIXON, Andrew. ARTE: O Guia Visual Definitivo da Pré-História ao Século XXI, São Paulo, Publifolha, 2011.

MAU, Bruce. Life Style, New York, PHAIDON, 2000.

MAU, Bruce. Massive Change, New York, PHAIDON, 2004.

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.