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GV CULT - Criatividade e Cultura

Canon

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01/09/2016 06h57

Por          Vítor Steinberg

Muitos do público do Cinemark não conseguem "parar" duas horas para ver um filme. Imagina então ouvir uma sinfonia de Bruckner?

Apesar da grife da fotografia, "Canon" também significa um artifício específico da história da música. Imagine um mundo como do filme "Fantasia"(1944), da Disney. Uma melodia imita a melodia original, às quais outras melodias intercalam em uma série de "imitações", um túnel de espelhos. Os prismas musicais vão transformando a composição num quebra-cabeças melódico, fabrica ambientação, ecos ricocheteando, produzindo a sagrada envolvência musical que veneramos. Bach desenvolveu essa complexidade e fazia isso como um bruxo instrumental.

Canon também está no "canônico", literalmente ser um cano, servir-se como um duto, à divindade espiritual. Alguns símbolos deste cano espiritual são representados nas religiões por chapéus, boinas, coroas, grinaldas. No judaísmo a quipá é a lembrança da soberania divina. No catolicismo, a mitra papal indica a ponte que seu espírito faz com Deus – "ponte" em elevação espiritual – o pontífice. Canonizar, portanto, significando estar de acordo às regras da igreja católica.

Entrou pelo cano, deu cano, encanou, desencanou, propinoduto, quem sou eu para falar de encanamento? Melhor seria chamar os irmãos Mário e Luigi, ao que me lembro, são heróis encanadores.  Melhor foi o espetáculo do ministro japonês virando vídeo-game no encerramento das Olimpíadas. Que performer pode superar a performance de um performer que nunca sai da performance? A arte está real demais.

Ou o menino sírio Omran Daqneesh "atuando" numa só foto como nenhum ator mirim chegou perto (Natalie Portman em "O Profissional" – 1994 e nosso menino Vinícius de Oliveira, o Josué de "Central do Brasil" – 1998).  As notícias competem com cenas de cinema, o cinema fica descreditado e desacreditado diante da potência jornalística da realidade.

Não consigo esquecer o exemplo de uma entrevista no Festival de Veneza em que Glauber Rocha fala que cinema é para ver e para ouvir, não é para imitar teatro, nem literatura. O cinema, em sua essência, é um barato audiovisual. E isso pode até ter poderes xamânicos transformadores.

Se o coração minado pelo absurdo do real não se interessar mais pela feitiçaria que da arte provém, não temos mais o que guardar em nenhum museu ou cinemateca. É inconveniente pensar que – a muitos – a arte é ruim, pois é inútil.

Não conseguimos mais lidar com a experiência audiovisual. Se convivemos com ela é num processo muito dinâmico e rápido, efêmero, você nem vai lembrar. O Facebook inventou o save-link atual para justamente termos onde colocar nossas memórias, escorrendo em scrollings cada vez mais desatentos, aleatórios, exercício que pode a qualquer momento dar uma LER no seu dedão.

A biblioteca de Alexandria e Sucata que virou a Internet explica. Quem nunca ficou patinando para lembrar a atriz daquele filme, o nome do filme, o nome do diretor; O papaizão Google informa, como um oráculo sem nenhuma vitalidade, um oráculo que não conhece mandinga, não sabe fazer mais nada a não ser balbuciar.

No cânon sócio-cultural vigente em nossos dias, a separação entre áudio e visual é o cão-guia da nossa existência. Enquanto realizamos inúmeras tarefas simultâneas – multitasking – ouvimos uma entrevista e "projetamos" sem querer o que a televisão está mostrando.

Metade de uma temporada de qualquer seriado: apenas ouvimos o som enquanto mexemos no celular. Enquanto visualizamos uma imagem na televisão – ou no instagram – ouvimos o novo álbum de uma banda x, a tagarelice com insuportável sotaque carioca da Globo News.

Você é ator de um filme e, do nada, meses depois, pode ter seu site hackeado e preenchido de degradações morais que vão virar seus fantasmas até o fim da vida, preço alto simplesmente por ter aparecido no cânon audiovisual. Seriam os Anonymous os grandes astros do cinema-absurdo-real-jornalístico de hoje? Astros sem identificação. Celebridades anônimas!

Muitos do público do Cinemark não conseguem "parar" duas horas para ver um filme. Imagina então ouvir uma sinfonia de Bruckner?

Música pop tem seus 3 minutinhos para caber na hora do rádio, acertar espaço para outras bandas e a brecha das propagandas. Normalmente o movimento de uma sinfonia tem um pouco mais e a sinfonia completa cerca de meia hora. É um curta-metragem! Quem tem paciência para isso?

Catástrofe das livrarias: parece que depois do declínio do império Cosac Naify, o decoro da qualidade foi absolutamente ignorado. Em questão de seis meses, de repente, você não acha mais nada, alguém prove o contrário, nada.

A Cia. das Letras resolveu publicar Oswald de Andrade com capa de pixo grafiteiro, lindo, mas estude os livros expostos ultimamente. A palavra "você" por toda parte, capas sedutoras. Você abre o livro e não tem nada, é um objeto fetichista para levar no metrô e dar um micro-tesão – estúpido e infértil – aos olhos alheios.

Hoje saiu uma publicação na Folha de São Paulo anunciando os eventos homenageando nosso graúdo crítico cinematográfico Paulo Emílio Salles Gomes. Ele faria 100 anos este ano e não por acaso o jornalista afirma que hoje em dia talvez ele nem fosse crítico de cinema.

Por que ele não se atinha somente ao cinema. Mas ao instrumento que poderia transformar o mundo.

O cinema como ferramenta, dispositivo que pensa o mundo, que reflete o mundo. Essa é a conexão esburacada dos cinemas-para-tribos de hoje.

Cadê o pensar-mundo? Cadê o saci rebolando até o chão, muito além do acadêmico chatinho que faz aquele filme limpinho, com a fotografia linda e depois passa o réveillon CVC em Los Angeles?

O ser-cinema não se limita a somente fazer filmes. Qual a sua profissão? Cineasta. E quais filmes já fez? Nenhum.

Edição        Enrique Shiguematu 

 vit

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.