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GV CULT - Criatividade e Cultura

O cinema vai às Olimpíadas (III): Berlim, 1936

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02/08/2016 06h10

Olympia, de Leni Riefenstahl (Alemanha, 121 min., 1938)

Por     Luigi Bisso e Bernado Buarque de Hollanda

Ao longo do primeiro semestre de 2016, uma parceria entre a Fundação Getúlio Vargas, por meio do Laboratório de Estudos do Esporte (LESP/CPDOC), e a Fundação Casa de Rui Barbosa, promoveu o ciclo de filmes e debates "As Olimpíadas vão ao Cinema".
A série compreendeu a exibição de alguns dos melhores filmes sobre a temática escolhida, seguida de debates com reconhecidos especialistas no tema de esporte e na área de cinema, como Hernani Heffner, Mônica Kornis, Victor Melo e Gilmar Mascarenhas.
Sendo assim, às vésperas do início dos Jogos Olímpicos de 2016 no Rio de Janeiro, vamos aqui também nessa coluna tecer comentários e compartilhar nossas impressões sobre os filmes exibidos e debatidos com o público presente.

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"O espetáculo esportivo a ser organizado na capital alemã mudaria a percepção mundial sobre o país…"

 

Há cerca de 76 anos, a Segunda Guerra Mundial chegava ao fim no teatro europeu de operações. Em seis anos, o dramático desfecho deixou a capital alemã, Berlim, em ruínas e a Europa arrasada, com um saldo de mais de cinquenta milhões de mortos. O III Reich que Adolf Hitler havia imaginado impávido e grandioso desmoronou sob as bombas e a artilharia aérea dos Aliados. O programa de eugenia, base ideológica e pseudocientífica do nazismo, foi catapultado, não sem antes matar mais de doze milhões de pessoas.

A guerra devastou o continente. A posteriori, não se podia acreditar que a Alemanha de Hitler convivera em relativa harmonia com seus vizinhos e que a capital alemã sediara o maior evento esportivo até então: as Olimpíadas de 1936. Hoje, quando se pensa no III Reich, tende-se a associar ato contínuo o regime nazista ao Holocausto. Seria o caso de perguntar: como o mundo não previu que as ambições do Führer levariam ao calamitoso conflito global?

Uma pista a essa pergunta pode ser encontrada no filme de propaganda Olympia, da diretora Leni Riefenstahl. Até então, os Jogos Olímpicos eram encarados como um evento de congraçamento, dedicado ao espírito desportivo de união entre as nações, por meio da superação atlética dos limites do corpo humano, tais como a velocidade, a resistência e a determinação. Sob a direção do partido nazista, o governo alemão colocou a organização do evento aos cuidados do Ministério da Propaganda, à época comandado por Joseph Goebbels. Para Hitler, as olimpíadas apresentavam a oportunidade geopolítica ideal para colocar o III Reich em evidência aos olhos da imprensa internacional.

Com esse propósito, o espírito esportivo cedeu lugar à ambição política. Após o fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1919), a Alemanha passara pelo momento mais conturbado de sua história recente. Da Liga Espartaquista à crise financeira internacional de 1929, a economia germânica e a estabilidade social só conseguiram se estabilizar após as reformas realizadas pelo ministro das finanças e pelo presidente do Reichsbank, o teuto-dinamarquês Hjalmar Schacht (1877-1970), nos albores da década de 1930.

Embora tivesse à frente um país ainda frágil, Hitler tencionava mostrar ao mundo que a Alemanha estava de volta ao panteão das grandes potências europeias. O país estava pronto para disputar novamente pela hegemonia do continente. entrementes, conforme afirma o historiador A.J.P. Taylor, em sua obra The origins of the Second World War, a guerra não estava nos planos originais de Hitler e o soft power olímpico lhe parecia muito bem-vindo.

As Olimpíadas constituíam a ocasião propícia para mostrar o reerguimento econômico-social do III Reich. O espetáculo esportivo a ser organizado na capital alemã mudaria a percepção mundial sobre o país, que havia pouco mais de cinco anos se encontrava na iminência de uma guerra civil. Para tanto, a chancelaria do Reich encomendou a construção de um magnificente estádio olímpico. Este devia fazer assemelhar sua arquitetura às grandes e épicas construções da Roma imperial.

O engenheiro Albert Speer (1905-1981) foi eleito arquiteto-chefe e projetou o Olympiastadium, que haveria de estar à altura dos demais monumentos alemães. Sendo assim, as Olimpíadas de 1936 introduziram uma série de novos procedimentos que redefiniram a "invenção das tradições" da competição. A pira olímpica, por exemplo, introduzida na Olimpíada de 1928, em Amsterdã, seria acesa em uma tocha, novo símbolo da competição. O artefato teria uma trajetória: partiria de Atenas, atravessaria diversos territórios e seria carregado por inúmeros atletas até alcançar Berlim.

Com a chegada da tocha, a cerimônia de abertura finalmente teria início, mediante o rito simbólico de acender a pira olímpica. Desde então, passados oitenta anos, o ritual é seguido ainda hoje, com a repetição da encenação a cada nova edição dos jogos. Outra iniciativa das Olimpíadas berlinenses foi a exibição das provas e das corridas, de maneira simultânea, nas salas de cinema, em todo o território alemão, algo inédito na ocasião.

Considerada a melhor cinegrafista alemã de então, Leni Reifenstahl (1902-2003) foi designada para a tarefa de produzir um filme sobre o evento olímpico. O filme deveria ser mais do que um simples registro documental das competições que ocorreriam no Estádio Olímpico. Com apuro estético, o filme deveria exaltar a façanha dos atletas pátrios. Os dirigentes do Partido Nazista perceberam a ocasião como uma oportunidade para provar as teses da "superioridade ariana".

Nos meses que antecederam o início dos jogos, a propaganda nazista atrelou o espírito esportivo aos ideais de eugenia defendidos pela linha de pensamento völkisch, substrato da doutrina ideológica do nazismo. O resultado final foi um portentoso filme, dividido em duas partes e com duas horas de duração cada, que mistura a cobertura das competições à peça propagandística nazista.

Lançada dois anos depois, em 1938, a película sofreu modificações na sequência. As versões atuais foram editadas para remover o discurso de Hitler ao final dos jogos, junto a imagens da iconografia nazista. A despeito da polêmica, fato é que Reifenstahl redefiniu a forma cinematográfica de enfocar os eventos esportivos. Com este documentário, houve uma radical redefinição dos recursos fílmicos de representação, não só do esporte como da realidade. Como não temos o conhecimento específico da área, podemos afirmar, na condição de leigos, que muitas de suas técnicas de filmagem são utilizadas até hoje como formas-padrão de registro imagético do real.

À primeira vista, Olympia almeja apenas retratar as atividades esportivas, nas suas mais diversas modalidades. A um espectador incauto, até mesmo a propaganda política do partido nazista pode passar desapercebida. Prestando mais atenção, o início do filme já indicia, através de uma imagem, a presença da filosofia Volkisch, com os atletas e as musas em filmados com seus corpos nus, escultóricos, escorço da perfeição humana. Ao olhar superficial, sugere-se tão-somente o retrato de deuses greco-romanos, com a tentativa de atribuir aos jogos olímpicos suas origens primaveris na era clássica.

De maneira sub-reptícia, há no filme um sentido atrelado às orientações totalitárias. Os atletas e as musas encarnam o corpo e a alma do "ariano perfeito". A comparação com as divindades antigas não foi feita ao acaso, tampouco a associação com a mitologia da Grécia antiga pode ser considerada fortuita. Uma vez que os nazistas classificavam os povos mediterrânicos como "naturalmente preguiçosos" – em sua mentalidade hierárquica, não chegavam ao ponto de classificá-los na mesma categoria dos judeus ou dos eslavos – Riefenstahl faz uma associação direta entre o povo alemão e as forças divinas da Antiguidade.

A glorificação dos atletas alemães fica, pois, patente na película. Segundo o relato dos desportistas, o espírito de devoção ao partido e ao Führer da nação era perceptível tanto nos estádios quanto nas ruas. Destarte, o controverso filme de Leni Riefenstahl, lançado em 1938, teve êxito de imediato, com ampla repercussão internacional. Entre os críticos de cinema, a película foi considerada tecnicamente superior ao documentário anterior produzido e dirigido por Riefenstahl. Como se sabe, O triunfo da vontade, de 1935, registrava em audiovisual o sexto congresso do Partido Nazista, em Nuremberg, realizado no ano anterior.

A admiração angariada por Riefenstahl com a realização de Olympia foi ofuscada pela repercussão negativa dos eventos políticos desenrolados a partir do mesmo ano de 1938. Em novembro daquele ano, apoiadores do regime totalitário, em conjunto com agentes da Gestapo, atacaram centenas de pessoas de religião judaica, acusadas de serem degenerados ou comunistas. Sinagogas foram queimadas e lojas foram saqueadas no evento conhecido como Kristallnacht – "a Noite dos Cristais".

Passados os anos de beligerância e mortandade, a hecatombe da guerra fez os crimes alemães tornarem-se públicos, assombrando o mundo com sua perversidade. Todo e qualquer material associado aos nazistas passou a ser enquadrado como um produto da intolerância e da corrupção moral. Os filmes de Riefenstahl foram tido como meras propagandas doutrinárias a serviço do regime, com suas qualidades estéticas denegridas e envoltas sob a mácula da polêmica.

Ao contrário de O triunfo da vontade, cujo teor propagandístico é escancarado, Olympia se redime como uma obra de arte dedicada ao espetáculo coletivo que se tornou um dos maiores megaeventos esportivos do mundo. Em Olympia, o nacionalismo convive com o respeito às demais nacionalidades. Assim, na mesma proporção que os atletas alemães, os desportistas dos diversos países representados não deixam de ser retratados, com cenas e contracenas importantes no conjunto da filmagem.

Jesse Owens (1913-1980), por exemplo, o famoso corredor norte-americano, acaba por ganhar um destaque especial na película, graças ao fato de ter sido o maior medalhista daquele torneio, prova irrefutável da insanidade dos postulados megalômanos hitleristas. Seja pelo interesse despertado para a história do cinema-documentário, seja pela importância atribuída à memória do esporte olímpico, seja pelo fascínio em compreender aquele intrigante e obscuro período histórico do século XX, Olympia é ainda hoje uma fonte preciosa de estudo e contemplação.

 Edição      Enrique Shiguematu

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Luigiside

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.