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GV CULT - Criatividade e Cultura

O cinema vai às Olimpíadas (II): Cidade do México, 1968

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12/07/2016 06h51

México 1968: as últimas olimpíadas livres, de Ugo Giorgetti. (Brasil, 2012, 52 minutos)

Por     Luigi Bisso e Bernado Buarque de Hollanda

Ao longo do primeiro semestre de 2016, uma parceria entre a Fundação Getúlio Vargas, por meio do Laboratório de Estudos do Esporte (LESP/CPDOC), e a Fundação Casa de Rui Barbosa, promoveu o ciclo de filmes e debates "As Olimpíadas vão ao Cinema".

A série compreendeu a exibição de alguns dos melhores filmes sobre a temática escolhida, seguida de debates com reconhecidos especialistas no tema de esporte e na área de cinema.

Sendo assim, às vésperas do início dos Jogos Olímpicos de 2016 no Rio de Janeiro, vamos aqui também nessa coluna tecer comentários e compartilhar nossas impressões sobre os filmes exibidos e debatidos com o público presente.

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"…há dez dias do início do torneio, ocorreu o chamado Massacre de Tlatelolco, no centro da capital mexicana."

Desde que foram criadas no fim do século XIX, as Olimpíadas têm reunido de quatro em quatro anos os melhores atletas de sua época, nas mais variadas modalidades. Durante um período de três semanas, o mundo acompanha as disputas, in loco ou pela TV, com a vivência das emoções de uma competição em que a performance esportiva se mescla à dimensão artística, à exibição performática e à fruição estética, conforme reivindicava o teórico alemão Hans Ulrich Gumbrecht, em seu livro Elogio da beleza atlética (Companhia das Letras, 2007; In praise of athletic beuty, Havard University Press, 2006). Nos bastidores do torneio quadrienal, atletas de todos os quadrantes do globo se reúnem na vila olímpica e lá convivem durante todo o período de realização do megaevento.

O documentário "México 1968", do cineasta brasileiro Ugo Giorgetti, foi desenvolvido nos quadros do edital "Memória do Esporte Olímpico Brasileiro". Trata-se de um projeto realizado com patrocínio do governo federal, por meio do apoio do Ministério da Cultura, da Cinemateca Brasileira, da Petrobrás e da Lei de Incentivo à Cultura. Desde 2011, o programa vem premiando filmes cuja temática resgata passagens e momentos importantes da participação brasileira nos Jogos Olímpicos.

México 1968 foi um dos trabalhos contemplados no edital de 2012. É uma produção da paulistana Canal Azul e foi dirigida pelo renomado Ugo Giorgetti. O diretor é conhecido por seus longas-metragens de ficção, ambientados na cidade de São Paulo, a exemplo do inteligente e bem-humorado Sábado (1995). O tema dos esportes, no entanto, não é estranho a Giorgetti, que realizou dois filmes memoráveis sobre futebol. O primeiro é Boleiros: era uma vez o futebol (1998); e o segundo, Boleiros 2: vencedores e vencidos (2004).

México 1968 vale-se de uma das principais fontes para o gênero documentário – as entrevistas – para reconstituir, por meio dos testemunhos de diversos atletas brasileiros que participaram das Olimpíadas de Verão de 1968, a primeira a ser realizada na América Latina, o clima daquela turbulenta edição olímpica, marcada por conflitos dentro e fora dos equipamentos esportivos.

Como se sabe, há dez dias do início do torneio, ocorreu o chamado Massacre de Tlatelolco, no centro da capital mexicana. Na ocasião, a violência governamental avalizou os atos brutais e sanguinários dos soldados de seu Exército, ao cercar a praça e executar de maneira indiscriminada os estudantes que protestavam no local. A matança deixou um saldo de centenas de mortos – um total de 325, segundo um criterioso levantamento do jornal inglês The Gardian – e de milhares de feridos e presos, dentre alunos, professores e escritores.

Segundo o ensaísta mexicano Octávio Paz, em seu admirável livro "O labirinto da solidão", esse acontecimento contraditório colocou a Cidade do México no epicentro de um drama internacional: a rebelião das subculturas juvenis e estudantis que sacudiram o mundo e que fizeram o ano de 1968 uma data "axial", para usar palavra do autor, em um dos ensaios publicados no posfácio da obra.

O movimento dos estudantes varreu Paris, Praga, Chicago, Tóquio, Hamburgo, Tel Aviv, Belgrado, Roma, Santiago, entre tantas outras cidades e capitais. A sublevação ampliou os horizontes reivindicativos jovens, fortaleceu-os como porta-vozes dos lídimos anseios do povo e soube captar todo um espírito de insatisfação do tempo. A vanguarda juvenil protagonizou assim manifestações, tumultos e motins pelos quatro cantos do globo, com a exacerbação do conflito geracional e com a revisão dos valores sexuais, comportamentais e ideológicos.

Em meio a esse fenômeno de insurgências e radicalizações, de hostilidades e repressões, com ecos nacionais e internacionais, o documentário rememora as circunstâncias da participação brasileira e a ambiência dos Jogos de 1968, à luz das versões apresentadas pelos atletas que tomaram parte nas seleções de vôlei, de futebol, de polo aquático e de basquete do Brasil. São incluídas também entrevistas com desportistas brasileiros que participaram das modalidades de atletismo, tiro, remo e hipismo.

Nesse apanhado, cada atleta relata sua própria experiência dentro da competição, desde os preparativos no Brasil até o regresso à cidade de origem. Vistos em conjunto, as falas permitem fazer uma reflexão retrospectiva sobre as condições de participação da delegação brasileira. As filmagens permitem, de igual maneira, entender como o esporte era encarado no Brasil do final dos anos 1960, momento em que se vivia o contexto político da ditadura civil-militar.

Os entrevistados reconhecem, de forma unânime, a pouca importância conferida pelo governo e pela sociedade brasileira à prática de esportes amadores. Sob a égide do amadorismo, deve-se reconhecer que quase nenhum dos atletas de então exercia sua modalidade esportiva como profissão ou como atividade de dedicação exclusiva. Tampouco havia investimento por parte do Estado ou incentivo que adviesse do setor privado. Para o filme, um dos atletas relata que, na época, praticamente qualquer um que vivesse de esportes era considerado um desocupado, um "vagabundo".

Um ex-jogador da seleção de vôlei alega ter sido reprovado em sua Faculdade de Educação Física, pois tinha se ausentado das aulas para treinar. Em termos organizacionais, não se verificou, de parte da CBD, qualquer tipo de transporte adequado para os atletas. A comitiva olímpica foi enviada ao México por aviões que pertenciam à Força Aérea Brasileira (FAB), em condições inóspitas, à beira do inacreditável.

Toda esta conjuntura se espelha no resultado final, com a conquista de apenas três medalhas pelo Brasil: uma no salto triplo, outra no boxe e uma terceira na vela – nenhuma delas o almejado ouro olímpico. Não obstante, segundo os relatos, o primeiro impacto na chegada ao México foi muito positivo, graças à hospitalidade da população local. Muitos se identificaram com a forma calorosa com que foram recebidos. Um dos participantes comentou que o mexicano possuía uma "sonoridade brasileira", observável em seu acento linguístico, e se irmanava numa certa atmosfera latina.

Todos os atletas se disseram bem recebidos e, o mais importante, se sentiram acolhidos pela hospitaleira torcida mexicana. Saliente-se que isto ocorreria também dois anos depois, durante a Copa do Mundo de 1970, realizada novamente no México. São incontestes as imagens televisionadas da partida final, que capturam a ambiência festiva do povo mexicano para com os futebolistas brasileiros tricampeões.

O clima político era similar ao brasileiro e é amplamente mencionado pelos atletas ao longo do documentário. A similaridade entre as ditaduras militares de cada país e a tensão vivenciada são pontos em comum rememorados por diferentes competidores, o que atesta a convergência vivenciada naqueles idos de 1968. Outro dado que recebeu destaque nas reminiscências dos participantes foi a liberdade de trânsito no interior da Vila Olímpica.

Os atletas reconhecem que 1968 representou a "última olimpíada" – mote para o título do documentário –, no decorrer dos centro e vinte anos de história dos Jogos Olímpicos (1896-2016). Participar deste torneio, para os atletas, consistia em uma experiência de liberdade, com o direito de ir e vir no local que servia de residência aos competidores. Até aquela décima nona edição do torneio, segundo testemunham, não havia uma preocupação exagerada com a segurança.

Conforme vimos com o filme "Um dia em setembro", comentado em nosso texto da semana retrasada, após o sequestro e os atentados de Munique em 1972, a vigilância em torno das Olimpíadas redobraria. Pode-se dizer que a política de segurança mudaria de maneira drástica, com as medidas preventivas adotadas pelo COI a partir de então. Os eventos passariam a ser alvo de um complexo esquema de controle. Na opinião dos depoentes, tal tensionamento acabou por distanciar ainda mais os competidores do público, isolando-os da cidade, da torcida e do próprio espírito de congraçamento olímpico.

Outro ponto muito lembrado pelos atletas brasileiros diz respeito ao famoso gesto simbólico-político dos dois corredores estadunidenses de origem afro-americana, Tommie Smith e John Carlos. Estes, ao subirem no pódio para receber suas medalhas, ergueram os punhos cerrados ao céu, em saudação aos Panteras Negras. Deram assim visibilidade a esse movimento afirmativo dos negros norte-americanos, empenhados na luta pelos direitos civis, e trouxeram de volta às olimpíadas o caráter marcadamente político que tinha em princípio se esvaído após as Olimpíadas de Berlim, em 1936.

Com base nas entrevistas com os atletas brasileiros, o documentário defende a tese de que 1968 simboliza uma inflexão nas Olimpíadas, não apenas em função das medidas de segurança, mas também em razão da progressiva rendição da competição em detrimento dos esquemas comerciais e financeiros.

Mais do que uma competição reunida em torno de uma suposta aura amadorística, tal como preconizado por seu idealizador, o aristocrata francês Pierre de Coubertin, passa-se doravante a vivenciar uma distinta realidade, em que prevalecem os interesses policialescos e mercantis, reconhecidos nos dias de hoje sob a nomenclatura dos megaeventos esportivos. É assim que o documentário, ao se volver para um passado de quase meio século, acaba por deixar questões e questionamentos contumazes ao etos olímpico do presente.

 Edição      Enrique Shiguematu

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Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.