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GV CULT - Criatividade e Cultura

Luiz Zerbini: “amor lugar comum”, o descompasso compatível

GVcult

08/07/2016 06h26

Beatriz Cury

Giovana Faro

O Centro de Arte Contemporânea de Inhotim, localizado na cidade de Brumadinho, abriga obras nacionais e internacionais que visam à reflexão sobre questões da contemporaneidade. Para isso, a instituição traz alguns diferenciais, como a localização distante de centros urbanos, a criação de uma relação espacial entre a arte e a natureza e a interação do público com as obras. Dentre as inúmeras galerias em Inhotim, encontra-se a "amor lugar comum", do artista plástico Luiz Zerbini.

Esse é conhecido não apenas por suas pinturas, mas pela produção de vídeos, ensaios fotográficos e esculturas. Em suas produções artísticas, ele não se interessa por questões formais de arte, mas sim pela criação de "uma análise social de uma cena"- cenas estas que mesclem pessoas, lugares, arquitetura e tempo. Como resultado, muitas vezes ele se desvia da pintura para explorar a criação de objetos, para fazer instalações e colagens. Trata-se de um complemento que permite a completa expressão artística de seus trabalhos. Com tamanha variedade de representações em uma mesma obra, é comum a presença de dualismos entre o orgânico e o geométrico, entre paisagens e formas abstratas.

Na galeria que abriga sua obra, o artista propõe uma reflexão sobre a realidade a partir de pinturas que apresentam combinações entre fauna, flora, geometria e objetos pessoais, levando a uma alteração e a uma mistura de imagens que provocam uma sensação ambígua de naturalidade e estranhamento. Dessa maneira, Luiz Zerbini não faz uma denúncia social direta, mas traz a releitura do mundo através de traços e cores da Tropicália nas obras expostas. Duas delas nos chamaram particularmente a atenção: "Lago Quadrado" e "Mar do Japão".

 À primeira vista, em "Lago Quadrado," salta aos olhos a parte superior do quadro, onde o contraste entre as faixas coloridas e vibrantes do fundo e a negritude das folhas sobrepostas a ele causam uma certa impressão de irrealidade ou abstração, uma vez que a enorme quantidade de detalhes impede uma percepção maior de outros elementos do quadro.

Porém, à medida que nos aproximamos e dirigimos nosso olhar para a parte mais inferior, percebemos uma gradação de cores, que vão se tornando mais realistas e condizentes com os objetos que estão retratando. Estes começam a ocupar uma parte maior do quadro e a se impor sobre as cores do fundo. Sob um olhar mais atento, percebe-se que não somem, mas que se tornam menos impactantes, por se tratar de cores como o cinza e o preto. Sob uma análise mais detalhada, percebe-se ainda que o artista retratou elementos da natureza como palmeiras, flores, coqueiros e outros tipos de plantas, de modo que a paisagem tropical se torna aparentemente perfeita ou idealizada. Entretanto, o artista optou por deixar seus "erros" na pintura. Assim, ao se aproximar da obra, é possível perceber linhas inacabadas, a demonstrar que o autor não tinha uma grande preocupação com a forma, mas sim com a profundidade de sua obra e com o efeito que esta poderia causar no espectador.  

Em "Mar do Japão", Zerbini busca retratar a realidade de forma bem mais precisa e menos abstrata. Logo na primeira vez em que se observa, compreendem-se os elementos nela presentes: uma natureza bem mais controlada, quase que "civilizada". Tal aspecto fica evidente com as janelas e as grades de madeira no centro do quadro, a impedir a completa apreensão da natureza em seu estado mais puro, diferentemente do que ocorre na outra obra, em que a natureza é bem mais livre e selvagem. Aqui, talvez pela presença maior de elementos humanos, a geometrização fica mais evidente e as cores são menos intensas. Outro aspecto interessante é que, embora o nome do quadro seja "Mar do Japão", o oceano não é colocado em evidência e nem mesmo no primeiro plano, aparecendo apenas de forma discreta e em tons pouco chamativos, encoberto não apenas pelas vigas como pelos galhos e pelas trepadeiras.

Dessa maneira, Luiz Zerbini consegue representar dois ambientes de seu cotidiano, a natureza e a urbanização, o que pode ser justificado considerando-se que ele, embora natural de São Paulo, morava no Rio de Janeiro, cidade que consegue articular muito bem as duas realidades urbanas heterogêneas com certo grau de sensualidade.

Esses dois projetos podem ser situados dentro de um movimento mais amplo da arte contemporânea. As obras consideram o alargamento de perspectivas de compreensão do fenômeno artístico, como Luiz Camillo Osório cita no capítulo "Arte Contemporânea Brasileira: multiplicidade poética e inserção internacional" do livro Agenda Brasileira: temas de uma sociedade em mudança.

Isso significa que nesse novo modo de fazer arte não se exige necessariamente um único tipo de interpretação específica, mas sim que o observador pode ser capaz de dar sua significação própria àquela composição. Ademais, a "convivência de diversas temporalidades" e "multiplicidades de agoras", como citado pelo crítico Luís Camillo, é particularmente presente nas duas obras de "amor lugar comum", pois a interação natureza-civilização é ambígua. Ela coexiste de forma indefinida, sem uma localização temporal explícita: não se especifica se o que está sendo retratado é a natureza pré-civilização ou após a completa urbanização do espaço retratado.

Nesse sentido, não só o objeto da pintura como também os meios artísticos utilizados pelo pintor são híbridos, apropriando-se de linguagens visuais mescladas, como a forma e o espaço, o que causa a subjetividade fragmentada que vemos em ambas as obras – reafirmadas pela geometrização da realidade, marca típica de Zerbini. Assim, a palavra-chave que poderia descrever essas duas produções artísticas é tensão: entre as duas realidades que se busca retratar, natureza e urbanização; entre os mais diversos recursos utilizados para se compor a criação artística; enfim, entre a imagem e a matéria.

A tensão se deve à simultaneidade de fatores a princípio divergentes. Ela também revela uma característica peculiar da relação do autor com o Brasil. Tal convivência, embora não completamente desarmônica, entre elementos ambientais e elementos humanos, pode ser interpretada como a análise de Luiz Zerbini sobre o processo de formação histórica do Brasil: o convívio entre ambos demonstrou que não houve a completa dominação de um sobre o outro. As cores vivas e intensas, por outro lado, poderiam representar o verdadeiro "caldeirão étnico" de culturas e etnias que o país representa, bem como o efeito de contraste produzido entre elas, a diferença natural que existe entre os múltiplos costumes, tradições e religiões dos povos que deram origem à população brasileira.

A partir dessa perspectiva, poder-se-ia traçar um paralelo entre a situação apresentada acima, frequentemente retratada pelo artista, e a ideia das contradições e dos descompassos do ensaísta Roberto Schwarz, em "As ideias fora do lugar". No texto, o autor defende a tese segundo a qual a sociedade do século XIX de Machado de Assis estaria mergulhada em um complexo dilema entre ideologias e instituições – importadas do modelo europeu. Estas estariam em profunda discordância com a mentalidade da sociedade, ainda muito conservadora em suas práticas.

Trazendo tal análise para a interpretação das obras "Lago Quadrado" e "Mar do Japão", poderíamos concluir que as montagens de natureza e urbanização representariam também um certo contraste e descompasso temporal, resultando em um certo desencanto da humanidade pelo espaço em que vive, espaço este marcado pela indefinição e pela fusão de dois elementos muito discrepantes, ainda que não inteiramente incompatíveis.

Por fim, mesmo Zerbini não fazendo uma denúncia social direta, as obras do artista proporcionam uma reflexão sobre a realidade brasileira e sobre a maneira como nos relacionamos com o espaço. Sendo assim, sua percepção do Rio de Janeiro, representada nas obras, torna possível que todos reflitam sobre as relações dos homens com as cidades e com a própria natureza.

Referências bibliográficas:

http://www.inhotim.org.br/inhotim/arte-contemporanea/obras/lago-quadrado/

http://gvcult.blogosfera.uol.com.br/tag/inhotim/

Edição: Enrique Shiguematu

Beatriz Cury e Giovana Faro são alunas de primeiro período de graduação do curso de Administração Pública, da Fundação Getúlio Vargas (São Paulo, Turma 8, FGV-SP). Este trabalho foi realizado na disciplina "Sociedade & Representação: o Brasil através das Artes", ministrada pelo professor Bernardo Buarque em 2016.1, após visita ao Instituto Inhotim – Centro de Arte Contemporânea, na cidade de Brumadinho, Minas Gerais

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.