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GV CULT - Criatividade e Cultura

Qual história você conta da sua história?

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29/05/2016 14h22

Por    Marcio Samia

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Sentado na sacada de um albergue jogando conversa fora com um amigo peregrino que eu acabara de conhecer, começamos a contar nossas histórias de vida e o que fez com que decidíssemos abandonar por 30 dias nossa vida comum, nosso conforto diário, para quem sabe encontrar uma resposta que estava, na verdade, dentro de nós mesmos.

Após falar sobre a importância que o Caminho de Santiago tinha na minha vida, o peregrino holandês começou a me contar sua história.

Disse coisas maravilhosas que passou na infância, com seus pais, no pequeno vilarejo onde cresceu e que me fez imaginar lugares que eu só conhecia através das telas do cinema. Me contou também sobre a sua adolescência e as primeiras namoradas… depois começou a me falar sobre seu trabalho e sobre como havia conquistado uma carreira de respeito num importante banco de investimentos em Amsterdã, na Holanda. Por fim, me mostrou a foto de sua esposa e seus dois filhos, enchendo os olhos de lágrimas para falar da saudade que sentia deles.

A história dele era incrivelmente cheia de momentos interessantes e bons. Fiquei muito feliz em compartilhar aquele final de tarde com alguém tão cheio de energia positiva. Parecia que nada de mal aconteceria àquele homem. O motivo de percorrer os 800 quilômetros da caminhada seria uma reflexão sadia sobre tudo que a vida lhe proporcionou, já que a pouco mais de dois meses ele havia saído do trabalho. Estava, no momento, desempregado e queria refletir antes de se jogar novamente no intenso mercado financeiro.

Participei de uma linda celebração que aconteceu a noite no albergue mesmo, e depois fui deitar para descansar, afinal minha meta para o próximo dia era andar 32 quilômetros. Dormi pesado.

Na manhã seguinte acordei bem cedo e parti. O dia estava calmo e agradável. Apertei o passo para aproveitar enquanto o sol não estava muito forte, assim ganharia uns bons minutos mais adiante. Após andar quase 20 quilômetros, cruzei com dois peregrinos que conversavam felizes. Passei por eles e os cumprimentei. No próximo bar, estaríamos nós três trocando nossas experiências sobre o caminho.

Após duas cervejas, já sabíamos bastante sobre a vida uns dos outros, e um deles me contou sobre a história de um outro peregrino que haviam conhecido a dias atrás, no Caminho.

Esse peregrino, pelo que me contaram, estava com seus quase 40 anos. Teve uma infância muito pobre, cheia de dificuldades, porém cercada de muito amor e carinho. Por viver numa região predominantemente cercada por drogas, cresceu vendo muitos casos de dor e violência, inclusive tendo perdido seu pai que devia dinheiro para traficantes da região. Com muito esforço, começou a trabalhar num lugar mais próximo da capital do seu país, e após algum tempo, conseguiu uma promoção, depois outra e mais outra… em menos de 8 anos chegara a diretor financeiro desta empresa. Infelizmente um dia, saindo do trabalho, foi assaltado e esfaqueado em uma via pública. As ambulâncias o levaram para o hospital, onde ficou por quase um mês, até se recuperar.

Me contaram ainda que arrancar essa história desse homem não foi nada fácil, pois o mesmo emanava uma energia tão positiva sobre a vida que raramente se lamentava de algo. Somente após alguns dias juntos de caminhada, entre uma parada e outra, foi possível descobrir essas feridas na vida do peregrino.

Incrivelmente me dei conta de que falavam do mesmo homem holandês que eu havia encontrado um dia antes no albergue, e com quem fiquei por horas conversando, e admirando sua vida "sem problemas".

Na realidade aquele homem escolheu as partes da vida dele que ele gostava mais, e contava essa parte da sua história para as pessoas.

Não sentia necessidade de falar sobre a parte ruim. Não sentia vontade de recordar assuntos tão dolorosos. Não se fazia de vítima da situação. Pelo contrário. Mostrava a força e a garra de um vencedor, que se esforçou para estar ali, e agradecia a cada coisa positiva que lhe acontecia.

Admirei ainda mais aquele homem. Enquanto os outros dois peregrinos partiam eu fiquei naquele lugar. Queria esperar o holandês para ter com ele mais um pouco daquela energia boa, e tentar aprender um pouco mais com alguém que faz o que eu quero um dia poder fazer: escolher a história que eu conto da minha história.

Já pensou no que você quer contar sobre sua história?

Um grande abraço. Nós nos vemos Evoluindo por aí!

Edição      Enrique Shiguematu

Samia nova bio

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.