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Tony Judt e a esfinge da guerra no século XX

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03/05/2016 06h10

Por     Bernado Buarque de Hollanda

Segundo o historiador inglês, constata-se uma ligeireza na aproximação com o passado. Vangloria-se o passado sob diversas formas, erguendo-se memorais em toda a parte. Há, não obstante, duas formas básicas de lidar com o passado: uma nostálgico-triunfalista e outra, piedosa e culpada, com vetor no sofrimento e na vitimização.

Historiador inglês, Judt nasceu em Londres, em 1948, e faleceu em Nova Iorque, no ano de 2010. Nesta cidade estadunidense, dirigiu um centro de estudos sobre a Europa e um de seus últimos livros intitulou-se "Pós-Guerra: uma história da Europa desde 1945", publicado português pela editora Objetiva. Um extrato de suas ideias foi publicado na Revista Piauí, em que reflete sobre a importância da guerra na História, ontem e hoje, tendo como interesse maior a reflexão acerca do significado dos confrontos militares ao longo do século XX. No texto, interpela as lições que devemos tirar do belicismo, e de toda a cultura armamentista, para não repetir os mesmos erros no novo milênio.

A onipresença da guerra na história humana nasce do ato de testemunhar o fenômeno humano beligerante. Não à toa os marcos e as balizas cronológicas da história são uma sucessão de datas em torno de confrontos entre os povos mais díspares, a exemplo da guerra da Criméia, de Kosovo, dos Bôeres, do Vietnã, de Canudos…

O século XX foi marcado pela unificação do mundo resultante da corrida imperialista do final do século XIX, quando as grandes potências europeias saem em busca da partilha do mundo. É daí que surgem o Japão e os Estados Unidos como potências imperais. É no bojo da Primeira e da Segunda guerras mundiais que se assiste da evolução da trincheira à luta pelo espaço aéreo. Esta viria a se virtualizar com a Guerra Fria, em latente escala nuclear.

Na guerra, qual a relação entre esquecimento e memória? Para que relembrar o ato bélico? O que significa aprender, que lição tirar de uma experiência? No caso em questão, é possível aprender com um século inteiro marcado pela beligerância?

Vale lembrar que o autor escreve dos Estados Unidos e é com os contemporâneos daquele país que ele dialoga, mais precisamente com aqueles a que chama de neo-conservadores.

Em fins da primeira década do século XXI, o historiador inglês chega a defender a ideia de que a tortura de Estado é aceita por alguns políticos e intelectuais norte-americanos. Argumenta também que há uma pressa em abandonar o século passado e em não refletir sobre ele, a fim de alardear a ilusão de que já ingressamos em uma nova era. Esta seria marcada, desde a derrocada do Socialismo no leste europeu, pelo triunfo do Ocidente, pelo fim da História, pelo momento unipolar americano, pela globalização e pela liberdade de mercado.

No ímpeto de nos livrarmos do século que passou, existe a suposição de que vivemos em um momento de extraordinário ineditismo, de que nada do que passou tem importância. Judt é categórico ao afirmar que, após a Primeira Guerra mundial, também se acreditou que não se repetiriam os mesmos erros.

Entretanto, o mundo do breve século XX foi idealizado sob a sombra do longo século XIX. Todas as ideologias vigentes – o liberalismo, o marxismo, o imperialismo – provinham daquele tempo anterior. Quer-se assim fazer acreditar que o peso do passado no presente não se faz mais sentir na transição do século XX ao XXI.

Segundo o historiador inglês, constata-se uma ligeireza na aproximação com o passado. Vangloria-se o passado sob diversas formas, erguendo-se memorais em toda a parte. Há, não obstante, duas formas básicas de lidar com o passado: uma nostálgico-triunfalista e outra, piedosa e culpada, com vetor no sofrimento e na vitimização.

Em virtude dessa última forma, caracteriza-se o século passado como um espetáculo de horrores sangrentos, com o racismo superior ariano servindo de justificativa à intolerância e ao genocídio, do qual já teríamos nos separado e superado. O problema, acordo com o autor, está na mensagem e na crença da superação desse momento e dessa etapa. A rememoração oficial não contribui, pois, para a consciência do passado.

Desde a crise do Estado-nação no final do século XX, as narrativas nacionais vêm perdendo sentido: nomes, lugares, inscrições, ideias organizam a memória e fornecem à nação referências passadas para a experiência do presente. A globalização e a velocidade das mudanças contemporâneas fazem aquilo que parece familiar e permanente cair no fundo do esquecimento.

Isso pode ser exemplificado à luz da expansão dos meios de comunicação: antes, havia educação nacional, rádio e tevê controladas pelo Estado e cultura impressa comum, ao passo que nos dias de hoje há um acesso a uma quantidade infinita de dados, de informações e de ideias fragmentadas.

Judt indaga: qual então a consequência negativa da pressa no desprendimento do século XX? Nos EUA, pode-se dizer, em uma palavra, que é o esquecimento quanto ao significado da guerra.

Na Europa, na Ásia e na África, o século XX foi vivenciado como uma sucessão de confrontos belicosos, que representaram invasões, ocupações, destruições, suspensões da ordem e da lei, perda de território. Mesmo para os vitoriosos ela foi amarga, dolorosa.

Além das guerras internacionais, a centúria passada testemunhou igualmente as guerras civis. Estas criaram campos de refugiados, campos de concentração e grandes deslocamentos populacionais. À guisa de exemplo, cita o caso das repúblicas da antiga Iugoslávia, cuja unidade nacional camuflava divergências étnicas.

Ademais, dentre os efeitos nocivos da guerra, estão a militarização da sociedade, a adoração da violência e o culto de morte, que se prolonga após a guerra na esfera do consumo de livros, filmes e jogos.

Ao contrário dos demais continentes assolados pelos confrontos bélicos, os Estados Unidos nunca tiveram seu território invadido, seus cidadãos massacrados, suas casas bombardeadas. Em outras palavras, a população dos EUA nuca sofreu a experiência do horror coletivo desencadeado pela guerra, sempre viveu distante dos seus horrores, acompanhando-a pela televisão, como se assistisse a um grande jogo eletrônico.

Os EUA conseguiram projeção com as duas grandes guerras e projetaram-se internacionalmente a partir delas. Antes, no século XIX, os EUA estiveram mais preocupados com suas fronteiras internas, com o México e com as diferenças históricas entre o Norte e o Sul. Seus soldados sofreram poucas baixas se comparados aos de outros países.

É por isto que o autor frisa que os EUA não têm memória de combate ou de perda de combatentes. E, entretanto, o que é mais marcante nas guerras são justamente as baixas civis, em que tampouco os EUA têm mortes comparáveis às de outros países.

O resultado é a glorificação militar por parte de figuras públicas de alta patente do regime democrático. Para Judt, em contraposição aos neoconservadores norte-americanos, a compreensão da guerra passa pela sua vivência.

A forma como os EUA descreve o final da Guerra Fria também é reveladora do contraste com a Europa. Enquanto nesta a queda do muro de Berlim foi vista pela maioria dos países e da população como um alívio para quem morava a leste e a oeste, naquela a débâcle comunista foi vista como triunfo da sociedade capitalista.

Judt argumenta ignorância da História, ao identificar erroneamente o terrorismo como inimigo e como novidade. Lembra que há terroristas de toda espécie, a exemplo do terrorismo nos Jogos Olímpicos de Munique, em 1972.

Em 2008, Tony contestava a suposição de que o terrorismo atual é composto por religião e ideologia totalitária, o "islamofascismo". Trata-se a seu ver de uma mistura de fenômenos históricos díspares.

Primeira confusão conceitual: colocar no mesmo patamar os diversos fascismos nacionais da Europa do entreguerras e as estratégias dos movimentos muçulmanos contemporâneos. Segunda confusão: comparar assassinos apátridas, motivados religiosamente, com Estados modernos controlados por partidos políticos totalitários. Terceira confusão: confundir forma e conteúdo, com a definição dos terroristas apenas por seus atos, fazendo deste amálgama uma combinação ideológica única. Assim, o ETA, o IRA e a Al Qaeda seriam a mesma coisa.

Chega-se, pois, à simplificação dos inimigos, com a fórmula fácil de desumanização e de demonização do outro, tornando-o estranho a fim de legitimar seu extermínio. Para tanto, basta lembrar a política de segurança nos estados brasileiros: no morro estaria o bandido, o inimigo, que justifica a violação de todo e qualquer princípio humanitário. A lógica da guerra banaliza os assassinatos cotidianos em um determinado local, como se ali fosse a fonte única e exclusivas do mal. Uma vez exterminados e eliminados os bandidos, acredita-se, é resolvido o problema.

É em razão dos motivos acima expostos que hoje ainda, apesar da existência da ONU e de outros organismos supranacionais, tolera-se a tortura em âmbito internacional, como ocorria até a era Bush na base norte-americana de Guantánamo, com os prisioneiros de guerra. Se em geral tendemos a ver a tortura com uma reprovação unânime, na primeira década do século XXI, segundo Judt, há aqueles que ainda defendem tais práticas nos EUA. Judt cita dois professores, um de Harvard e outro de Chicago, que preconizam tal método para extrair informações necessárias à obtenção de informações de prisioneiros de guerra.

Há pouco tempo atrás a tortura confundia-se com a ditadura, inexistindo na democracia. Propõe, sem embargo, uma comparação com o que fez Bush em pleno período "democrático". As distinções atuais – "nós" e "eles" – na guerra contra o terror não são novas. São as mesmas distinções que autorizaram os campos de concentração e a tortura, haja vista as ditaduras militares na América Latina, cujo objetivo era salvaguardar a ordem nacional ameaçada por terroristas-comunistas.

Em súmula, podemos assim estruturar as ideias desse autor com as respostas às cinco questões abaixo:

  1. Qual é o argumento central de Tony Judt?

Judt entende que há uma pressa no mundo contemporâneo em acreditar que o século XX foi superado, de que estamos vivendo uma nova era, sob o triunfo do livre mercado, do fim da história e da irreversível globalização. Após a Primeira Guerra mundial, acreditava-se que nunca mais se repetiria aquele cenário horrendo. Contudo, ele se repetiu de maneira ainda mais devastadora na Segunda Guerra. Vale ainda dizer que todo o século foi pautado por ideologias do século anterior: o liberalismo, o marxismo, o imperialismo, o industrialismo…

  1. Em função de que binômio o autor articula passado e presente?

Judt entende passado e presente em função da dialética da lembrança e do esquecimento. A tomada de consciência daquilo que aconteceu no passado torna possível com que determinados erros do passado não se repitam, ao passo que o esquecimento faz com que os comportamentos supostamente ultrapassados venham à tona de maneira inconsciente. O esquecimento é uma forma de se livrar de um mal-estar, de algo que incomoda no homem.

  1. Quais são as posturas humanas tradicionais em relação ao passado?

Uma é nostálgica e triunfalista (erguer memoriais), a outra é catastrófica e vitimizadora (a que remete ao extermínio em massa dos judeus na Segunda Guerra).

  1. Que mudanças estruturais na sociedade têm contribuído para alterar a nossa experiência em relação ao passado?

O historiador considera que, durante boa parte do século XX, as memórias nacionais organizavam nossa percepção do passado, com base em nomes, ideias e instituições, que vinculavam as distintas gerações ao longo do tempo. Estes eram previamente conhecidos, através da educação escolar que unificava a língua nacional e dos meios de comunicação de massa, tais como o jornal, a rádio e a televisão. Hoje, assiste-se à configuração de um sistema internacional de informações, com base na microcomputação e na informática, que fragmenta aquele solo de experiência comum e torna aquilo que durante muito tempo foi considerado familiar e permanente em estranho e passageiro. Trata-se da globalização e da velocidade das mudanças que acarretam fossos geracionais e múltiplas possibilidades de identificação em boa parte do globo. É a mundialização da cultura.

  1. Por que, segundo o historiador, a percepção da guerra nos EUA é diferente?

O esquecimento norte-americano perante as atrocidades cometidas no século XX faz parte de uma relação diferente com que este país vivenciou em relação a outros continentes. Em parte, porque os EUA não tiveram seu território e sua população civil atacados em intensidade. Eles então não conhecem a crueza e o horror da guerra. Um dos grandes índices para se mensurar os danos de uma guerra é a baixa de civis. Os EUA tiveram pouquíssimas guerras comparativamente. Os momentos de guerra foram positivos para a economia norte-americana. Os EUA se projetaram internacionalmente após a Primeira Guerra. Com o Plano Marshall, tornou-se potência hegemônica no Ocidente e polarizou a Guerra Fria com a URSS. Por isso, a guerra e o militarismo estão no imaginário de figuras públicas, tornando-se sua principal opção quando há problemas e quando se sente ameaçada em nível internacional. Sua administração do terrorismo tem sido um desastre. Financiou o Iraque contra o Irã durante 8 anos, depois quis esmagar a ditadura de Sadam Husseim, desde que este invadiu o Kuwait petrolífero; defendeu e patrocinou golpes militares na América Latina, depois se apresentaram como guardiões da democracia no continente.

Eis o veredicto, em nada condescendente, esposado por Tony Judt, acerca da guerra no século XX e do papel dos Estados Unidos em seu processo.

Edição      Enrique Shiguematu

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Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.