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GV CULT - Criatividade e Cultura

As « possessões maravilhosas » de Stephan Greenblatt (I)

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03/11/2015 06h03

Por     Bernardo Buarque de Hollanda

Ernst Haas - Ceremonial Dance, Bali (1956)

Fotografia: "Ceremonial Dance", Bali (1952), por Ernst Haas.

Sabemos, com o filósofo gaúcho Gerd Bornheim, que os grandes descobrimentos não são um fato, mas um conceito, que instaura uma ruptura, cujas causas e consequências são difíceis de precisar. O importante a reter é que ele instaura uma percepção radical do homem e do mundo moderno, com dimensões filosóficas, técnicas e antropológicas inteiramente novas.

Sabemos, com o Sérgio Buarque de Visão do Paraíso, que determinados mitos bíblicos animaram a imaginação dos navegantes lusitanos e espanhóis, imbuídos da ideia de que alcançariam na terra as origens bíblicas do mundo, uma terra de condições ideais para a vida terrena. Temos com o historiador paulista a tentativa de realização de uma história do imaginário e das mentalidades, em que se procura compreender de que maneira o mito é tanto efeito quanto causa da história, na medida em que ele justifica o movimento e as ações dos homens.

E com Stephan Greenblatt, o que temos? Como ele se posiciona? É o que começaremos a detalhar no texto da coluna de hoje.

Ainda não conheço os estudos de Stephen Greenblatt sobre Shakespeare, "Renassaince self-fashioning" é de 1980, mas seu livro Marvelous possessions (1992) – em português "Possessões maravilhosas: o deslumbramento do Novo Mundo", publicado pela EDUSP em 1996 – é, por assim dizer, deslumbrante.

Nele, o teórico estadunidense, defensor do Novo Historicismo, aborda as narrativas de viagem da Idade Média tardia e da Renascença, em que o deslumbramento com o novo aparece como índice central dos cronistas em suas experiências com o Novo Mundo.

Registre-se que o livro é dedicado a Natalie Davies e que traz agradecimentos a Wolfgang Iser, a Michel de Certeau, a François Hartog e a Tzvetan Todorov. Rende-se tributo também a Homi Bhabha e a Randholf Starn – nomes por si só auspiciosos da posição de Greenblatt na historiografia internacional.

Em que pesem textos fragmentados, anedotas duvidosas e pouco confiáveis a uma abordagem histórica sistêmica, trata-se de uma obra reveladora dos procedimentos de apreensão e explicação das diferenças. O Autor procura entender de que maneira o contato com terras, povos e costumes radicalmente novos e estranhos produziram efeitos nos modos de representação ocidental.

O espanto e a surpresa distanciam-se do conhecimento e da crença até então previamente estabelecidos. É essa primeira impressão de assombro que faz o homem se perguntar sobre suas próprias raízes. O assombro produz uma espécie de despossessão, que em seguida vai ser objeto de redução e de apropriação do europeu. A forma como o europeu apreende a terra, o homem e os costumes americanos é a escrita.

Através dela é possível construir uma representação do "outro". E aquilo que os europeus viam não pode ser visto de uma forma unilinear e homogênea. Deve-se levar em consideração a cultura nacional e religiosa dos cronistas, a fim de salientar os traços daquilo que se observava. Assim é importante saber se são ingleses, espanhóis ou franceses. Se são católicos ou protestantes. Mais tarde, se os católicos são dominicanos ou franciscanos; calvinistas ou luteranos.

De imediato, percebe-se que o autor se revela um fascinado pela arte de contar histórias. Cita, por exemplo, As mil e uma noites como o livro de sua infância. Lembra a sentença de Benjamin segundo a qual toda a história real tem alguma utilidade para a vida prática. Mais à frente, menciona um outro livro que marcou a sua infância, o Livro das maravilhas, escrito por um jornalista americano, realizador de uma série de aventuras pelo mundo.

Para aquela alma suburbana dos Estados Unidos dos anos 1950, aquelas histórias povoavam de encanto a sua imaginação infantil. Ao crescer, trocou os livros de maravilha pelos romances e pelas etnografias, muito embora uma puerilidade infantil tenha-se mantido em sua curiosidade por outras culturas e em seu fascínio por contos.

Isso quiçá influencia a estrutura de seu livro, baseado em pequenas histórias, em anedotas, mas do que numa história totalizadora e cônscia de seus nexos causais. As crônicas de viagem não são contínuas, mas pontuais; não são articuladas, mas isoladas, aleatórias e fragmentárias. Elas registram o inesperado, tal como o desembarque de Colombo em ilhas americanas.

Por mais singulares e contingentes que sejam, as anedotas são sempre representativas. Situam-se entre o momento local e uma estratégia mais ampla. O significado impresso pelo viajante às suas anedotas contém alguma utilidade, o que a torna digna para o ato de contar e recontar. Por conta disto, as anedotas figuram entre as principais "tecnologias representacionais de uma cultura".

O professor em Berkeley, estudioso do Renascimento, põe-se assim a contar uma anedota sua de viajante. Em 1986, esteve em Bali como turista e numa noite chegou a uma pequena aldeia onde os nativos estavam reunidos no pavilhão comunitário assistindo a uma cerimônia religiosa exibida na tevê, em que os protagonistas eram os próprios aldeões, em estado de transe.

Aquela situação faz o autor ponderar que se tratava de uma "assimilação do outro" em jogo. Mas não uma assimilação com via de mão única e passiva de um povoado não-ocidental nos confins da Terra diante do poder do mercado e da tecnologia capitalista. A forma idiossincrática como os balineses assimilam o vídeo cassete, valendo-se dele para uma entusiasmada auto representação, mostra que os significados ideológicos não são determinados a priori pelos detentores das altas tecnologias.

Se os modos representacionais não são neutros, também não são unidirecionais. Estabelece-se aí uma zona de intersecção em que avulta o notável poder de adaptação de indivíduos e culturas, embora para os balineses a assimilação do televisor nada tivesse de notável, dando-se ao nível do banal e corriqueiro.

O autor, fã de Nietzsche e Montaigne, dá prosseguimento à sua anedota, ocorrida no Dia da Independência da Indonésia. Ao invés das danças tradicionais, ele se depara com três cenários no centro de uma praça balinesa: pessoas assistindo a um filme norte-americano; balineses se divertindo com um filme que ironiza os ricos de Jacarta; e um velho místico, contador de histórias.

Nesse local, ele reencontra os aldeões que antes avistara e os observa naquele ambiente mais vasto de fascinação pelas imagens em tela. O autor explica o sentido de sua historieta a partir daquela polvorosa de balineses a correr daqui ali em torno de três palcos. O problema da assimilação do outro se refere à reprodução e à circulação do capital mimético.

Há uma relação entre mimese e capitalismo na medida em que este, com sua expansão pelo mundo, foi responsável pela proliferação de representações numa escala nunca antes vista. Este conjunto de imagens vem sendo acumulado em arquivos, bibliotecas e centros culturais, adquirindo poder de reprodução.

A mimese é uma relação social de produção em si mesma. As representações não são só reflexo, efeito e produto da sociedade, mas produtoras e modificadoras dela. De todo modo, o autor reitera que há uma especificidade do capital mimético diante das demais práticas sociais. Ao contrário dos pós-modernos, não sustenta a indistinção entre realidade e representação. Trata-se, portanto, de uma relação intrincada.

Continuaremos, na próxima coluna, a apresentar o instigante livro de Greenblatt.

Edição    Filipe Dal'Bó

Bernardo Buarque de Hollanda

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.