Intérpretes
Por Vítor Steinberg
Quinta-feira próxima, dia 30 de Julho, estreia nos cinemas o novo filme de Jean-Luc Godard: "Adeus à Linguagem", filmado em 2014. Um detalhe faz o filme destacar-se de qualquer previsão: é 3D. Isso mesmo, faça a equação, é um filme 3D de Godard. Eu assisti a obra-prima de duas maneiras: primeiro em 2D baixado em torrent e em 3D meses depois, semana passada, na pré-estreia no Reserva Cultural. Já é bem sabido que no Reserva você não pode entrar com pipoca. Cult ou não, é símbolo alinhado de respeito.
Será que é a despedida de Godard? Continuamente irônico, ácido, o seu 3D escorre poesia, prepare-se acaso você for sensível. Godard sabe colocar a música, voz off e imagem numa técnica (intuitiva) arrebatadora. Extremamente arrebatadora. Tudo é vivo, jovem e fresco. Tudo, até a voz podre do diretor infiltrando-se em todos os poros da sala de cinema. Tudo exclama vida, exclama viver. Godard é grito e sussurro, poderoso e frágil, sensível, urbano e dândi. Flâneur magicida.
Antes de começar o filme desceram algumas pessoas para congratular o momento e apresentar a sessão. Primeiro o elegantérrimo Seigneur Jean Thomas Bernardini, um exímio cavalheiro, honrando a aquisição de um projetor 3D que iria fazer sua primeira performance aquela noite.
Algo bem cinematográfico logo de partida. Ao chamar seus convidados, o patrono do Reserva disse que Godard estava muito doente (desde Março) e não tinha vindo pois não viaja.
Enquanto me vi pensando se Godard tem o mesmo medo de Lars von Trier – aviões – descem o ator Kamell Abdeli e a gata maravilhosa da Héloïse Godet. Junto a eles, a tradutora. A atriz francesa apanhou o microfone e perguntou se não seria mais fácil ela articular em inglês. A plateia concordou e – automaticamente – a tradutora ficou desempregada.
Fiquei chateado, pois todos os fetiches de vê-la falando francês caíram ralo adentro em nome do pragmatismo. Foi aí que ela sacou o iPhone branco de sua bolsa e pediu para o público vestir os óculos 3D para tirar uma foto. Aproveitando o nome de Godard e dizendo que a foto seria para ele ver na Suíça, a atriz conseguiu seduzir a todos. Nem precisava.
A projeção falhou no começo. Tiveram que recomeçar tudo. O que foi divertido porque todos cogitaram ser uma armadilha de Godard, já que ao mesmo tempo ele demandou a legenda do filme ser parcial (não pegou tão pesado quanto no Film Socialisme, trabalho anterior do mestre).
Depois de 20 minutos já começados, sofreu demais a mulher ao meu lado. Um outro bocejava de forma tão dramática que parecia ter fixação pela fase oral. Uma moça de braços cruzados beijava um cara. De braços cruzados? O mundo real é tão estranho…
Godard é delicado e violento. Como Goya, como Beethoven. Acho engraçado um Rubens Ewald Filho dizer que ele é chato. Chato é quem não transa. Toda a virilidade de um homem só pode ser traduzida ou pelas mulheres ou pela arte. É até aí uma questão de linguagem. O cinema é um barato audiovisual, não tem nenhum compromisso para contar uma história. Nem o teatro, nem a literatura. Narrativa não é utilidade na arte.
Em meados do 3D, Godard nos fala que no futuro cada um de nós vai ter um intérprete, porque não saberemos mais o que estamos dizendo. Indivíduos somos e estamos cada vez mais individualizados. A parábola é que a noção de "amizade" vem da Grécia, com a percepção do indivíduo-cidadão.
Mallarmé explica Godard. Esse Godard velho-jovem, fazendo esse cinema lindo de morrer. Godard é liberdade. O alto preço da liberdade. Godard é muito rápido no raciocínio – difícil de acompanhar, mas sempre belíssimo. Ele mesmo diz que deveria ter sido matemático. Ele é ação/discussão. Depois, apenas discussão. Ação é tarefa nossa.
Numa outra parte, virtuose em seus aforismos belíssimos – ouvimos: "Duas grandes invenções: o infinito e o Zero". E depois: "Não. O sexo e a morte".
Edição Filipe Dal'Bó e Samy Dana
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