Mãos de Cavalo
Por Ana Júlia Dias Santiago
O livro Mãos de Cavalo, escrito por Daniel Galera em 2006, trata de um mergulho profundo no psicológico do personagem principal, Hermano, cujo apelido dá nome ao livro. Memórias singelas e traumáticas de sua infância e adolescência se intercalam sistematicamente com o fluxo de consciência de seu presente; é por meio do discurso indireto livre que o narrador adentra no complexo emaranhado de ideias de Hermano e traz à tona seus julgamentos, autocríticas, lembranças mais recentes como o nascimento da filha, o dia em que conheceu sua esposa, etc.
A ordem dos discursos compromete o padrão tradicional de linearidade, toda sua subjetividade é exposta de maneira íntima, confusa, medrosa e pessoal, e é a partir disso que a obra se desenvolve, construindo a busca do personagem por si mesmo a partir da assimilação do passado e perspectiva duvidosa do futuro.
A produção de Galera caracteriza muito da literatura contemporânea, e podemos constatar isso segundo duas interpretações sobre o significado da literatura atual. Vejamos:
Para a professora de literatura francesa da USP, Leyla Perrone-Moisés, a literatura contemporânea brasileira pode ser chamada de "literatura exigente", que se caracterizaria como "gênero inclassificável, misto de ficção, diário, ensaio, crônica e poesia". Essas características são marcantes em Mãos de Cavalo, que se constrói a partir de relatos confusos da sua vida pessoal, cuja profundidade escapa da prosa e beira a poesia.
O segundo significado das produções literárias da atualidade é dado pelo também professor de Letras Wander Melo Miranda. A partir da indagação sobre quando a literatura passou a deixar de ser uma alegoria nacional e deixou de ser a privilegiada mediadora dos embates entre sociedade e Estado-Nação, Melo Miranda constata que a literatura contemporânea nasceu nesse momento, em que a literatura e as interrogações que cabem a sociologia se tornaram mais independentes uma da outra.
O sociólogo Octávio Ianni discute em seu texto Sociologia e Literatura a relação entre arte e ciência, especificamente entre as duas do título. Esse é um tema interessante de ser pensado tratando-se do caso do Brasil, onde a sociologia, e as ciências humanas no geral, se desenvolveram vinculadas à literatura. A primeira manifestação literária brasileira, por exemplo, foi a literatura de informação – literatura usada para descrever o território recém descoberto (sua geografia, povo, natureza, etc.) – ou seja, uma mistura entre o real, as análises do escritor (ciência) e suas fabulações por conta do medo e mistério diante de uma terra desconhecida (literatura, arte).
Especificamente após a Independência do Brasil, em 1822, se sentiu a necessidade de resolver os conflitos entre sociedade e o recém Estado-Nação, ou seja, criar uma identidade nacional e buscar entender os traços sociais próprios do Brasil e do brasileiro. Desse modo, buscou-se cumprir essa missão com a literatura, área do conhecimento mais desenvolvida na, então, ex-colônia, e foi a partir disso que criou-se um casamento entre teses e concepções das ciências sociais, e fabulações e elementos narrativos da literatura.
Essa relação se demonstrou como um problema para a linguagem de ambos os campos. Enquanto a esfera das letras busca encantar e ou reencantar o real por meio de figuras de linguagem e da estética, o ramo da ciência desencanta-o em razão da sistematização, racionalização, identificação, etc. Ou seja, o que se produzia era uma escrita híbrida, com linguagens divergentes, entre questionamentos da sociologia e desejos de fabulação da literatura.
Não se sabe ao certo quando, e nem se, essa relação teve fim. Porém quando as primeiras universidades começam a ser criadas nos anos 1930, enquanto ainda vigorava o modernismo, o campo acadêmico das ciências humanas cresce muito e a arte, apesar de não lavar as mãos para esse problema, alivia suas costas, já que agora não é mais a única responsável por tentar desvendar os emblemas do Brasil.
O caminho da arte foi árduo até os meados dos anos 1990. A Indústria Cultural na década de 1950 ditava as produções artísticas sobre os pilares de massificação, homogeneização, vinculação ao mercado e ideologia capitalista; e, posteriormente, a Ditadura Militar se utilizou dessa mesma concepção como instrumento de persuasão ideológica e proibiu qualquer tipo de expressão que fosse contra essa mesma ideologia. O cenário artístico que vinha perdendo força com a primeira, só se agravou com a segunda.
Quando a ditadura teve seu fim e a arte pode respirar novamente, a literatura formou uma nova síntese e, agora mais independente tanto da necessidade de servir como alegoria nacional quanto da censura de um Estado ditatorial, passou a produzir a "literatura exigente" de Perrone-Moisés, cuja inovação teria como pressuposto a ruptura com este tipo de tradição: "Enquanto muitos ainda se aproveitam das técnicas narrativas do século XIX, esses escritores assimilaram as vanguardas do século XX e desejam, agora, sair da modernidade".
Esse é o caso de Mãos de Cavalo, cuja estética e cuja trama negam completamente os vícios vividos até o fim do modernismo e vão contra a tendência ainda existente da produção cultural de submissão da arte à lógica do Mercado.
Edição Filipe Dal'Bó e Samy Dana
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