O conceito de reforma religiosa na Europa moderna (I)
Por Bernardo Buarque de Hollanda
Segundo um consenso terminológico estabelecido no início do século XX (Venard, 1977), chama-se Reforma o movimento religioso saído de Lutero, que se estende e se diversifica ao longo do século XVI, tendo por conteúdo essencial a afirmação da doutrina da "justificação por meio da fé", com a negação das técnicas religiosas (ritos, sacrifícios e cerimônias) e com a referência direta ao texto das Escrituras. A Reforma, em ruptura com o papado, instaura, frente à antiga e tradicional Igreja romana, várias Igrejas "protestantes".
Em face desse termo central, Reforma protestante, dois outros se subordinam. A subordinação cronológica estabelece um antes, a Pré-Reforma, isto é, tudo aquilo que é visto como signo precursor do grande acontecimento, e um depois, a Contra-Reforma, que para a maioria dos historiadores compreenderia a Inquisição, a Companhia de Jesus (1534) e o Concílio de Trento (1545).
Desse modo, a tríade, com sua série de palavras saídas do latim reformare, indica um movimento sucessivo de renovação, revolução e revisão. A sucessão é utilizada mais ou menos consensualmente por historiadores franceses como Pierre Chaunu e Jean Delumeau, para designar as transformações religiosas que, desde o fim da Idade Média até o princípio dos Tempos Modernos, marcaram a cristandade ocidental.
A importância do termo para a evocação de uma nova era pode ser constada em observação de Charles Maurras (1868-1952), em texto de 1928. Para o controvertido monarquista católico da Ação Francesa, a época moderna pode ser resumida em três palavras: Reforma, Romantismo e Revolução, das quais o encadeamento histórico é simbolizado por um ponto de partida, as "ideias suíças" que se concretizaram na religiosidade reformada de João Calvino (1509-1564) e nas reivindicações democráticas de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778).
De acordo com Alain Tallon (2002), a história religiosa da Renascença é obviamente marcada pela ruptura da Reforma protestante, mas, nos últimos decênios, a historiografia tem apresentado a tendência a desmistificar as datas de 1517 e 1520, quando o monge agostiniano Martinho Lutero publica as suas Noventa e Cinco Teses contra as Indulgências, afixadas na porta da catedral de Wittenberg.
O historiador francês reivindica a necessidade de se estudar a Igreja do período da Renascença por ela mesma, sem se deixar levar pela ideia unívoca de um corte arbitrário operado pela Reforma protestante e sem se deixar influenciar pelo discurso consensual contemporâneo. Este, voluntariamente adotado pelos historiadores, adota a perspectiva de uma reação cristã sobre os chamados "abusos" da Igreja católica e sobre a suposta inadaptação das estruturas eclesiásticas à sociedade emergente.
Segundo Tallon, tais estruturas institucionais não são estáticas. Elas estão em plena reconstrução após as provas passadas durante o Grande Cisma do Ocidente (1378-1417) e a crise conciliar da primeira metade do século XV, com o Concílio de Constança (1414-1418) e o Concílio da Basiléia (1431-1449). O papado romano, vencedor de seu rival de Avinhão e dos conciliares que queriam sobrepujar seu poder, é por assim dizer o mestre-de-obras desta reconstrução e readaptação.
Ainda em consonância com Tallon, Paolo Prodi (1982) estudou a ação dos papas na Renascença. De acordo com o historiador italiano, em seus famosos concílios o papado não foi em busca da restauração de um ideal medieval anacrônico que versasse sobre a soberania universal. A instituição papal se adaptou, ao contrário, de maneira ativa ao novo mundo dos Estados modernos.
Ademais, para o historiador italiano, a Igreja foi ela própria iniciadora modelar desse processo, notadamente em razão da precocidade do seu desenvolvimento, em termos da organização administrativa de suas possessões italianas. Pode-se dizer então que o papado, durante a Renascença, soube ambientar e adequar sua política pontifícia ao contexto político e social dos primeiros tempos modernos.
Deve-se pontuar também que o centro eclesial romano não é o único a abranger esta mudança. Ao enumerar os fatores da crise religiosa, ainda Alain Tallon insiste sobre a vitalidade das Igrejas nacionais, tal como evidencia o caso francês. Esta constatação se apoia sobre monografias diocesanas na França, como a diocese de Estrasburgo, cidade considerada a capital da reforma francesa, que permitem medir no plano local o número de fiéis, o esforço dos clérigos, as dificuldades pastorais, o impacto da Reformas protestantes e o princípio da Reforma Católica.
A noção de crise, tão familiar à historiografia religiosa da Renascença, tende, por conseguinte, a ser revista. Uma escola historiográfica inspirada nos trabalhos de John Bossy (1985) chega a afirmar a pujança da religião chamada "flamboyant", sua coerência e seu enraizamento local. O historiador inglês sustenta que a crise vem de fora da Igreja, em razão de uma vontade política de "depuração". Junto a isto, a suposição de um hiato entre a religião esclarecida das elites e as superstições populares não contribui para esclarecer o que era efetivamente a vida votiva religiosa e sua impregnação no cotidiano até então.
É oportuno então adotar uma posição mais cautelosa no que se refere à crise da Igreja e ao aspecto moral do abuso, isto é, a livre venda de indulgências por profissionais 'perdoadores', prática institucionalizada na Idade Média e vista como estopim da Reforma. A querela referente ao abuso é, ao contrário, a prova das novas esperanças com que se depara a Igreja, ao defrontar-se com o humanismo cristão. A demanda por reformas é também um dos meios das lutas de poder inauguradas pela Igreja no Renascimento. A tese do historiador francês Jean-Marie Le Gall (2001) sobre as reformas monásticas permite descrever as lógicas políticas e sociais que se escondem por trás do discurso estigmatizante do "abuso", dando a conhecer as práticas às vezes violentas dos reformadores.
O papel do Estado, primeiro ponto de apoio das Reformas, posto que um de seus grandes beneficiados, deve de igual maneira ser colocado em relevo. A Monarquia não impede a difusão da ideologia da reforma monástica, condenando o mundo e seu poder corruptor, por ocasião desta luta contra o "abuso".
A dimensão profética da religião tradicional e sua orientação escatológica não devem ser minimizadas. Elas coexistem, não sem contradição e confrontação, com um certo conformismo e com a perfeita inserção das estruturas eclesiásticas na vida institucional e religiosa da sociedade renascentista. Pode-se mesmo falar de uma fusão profética no período em questão.
O historiador Marjorie Reeves, em seu livro "The influences of the profecy in the late Middle Ages" (2000), retoma a discussão sobre a herança medieval e mostra o impacto político da profecia. Um dos aspectos que avalia é o extraordinário eco popular da profecia. Denis Crouzet (1990), discípulo de Pierre Chaunu, por sua vez, descreve a angustiada escatologia católica e aponta para o "desangustiamento" calvinista e para a violência de cada uma das manifestações do sentimento religioso.
Nesse sentido, a figura essencial é o padre dominicano Girolamo Savonarola (1452-1498) e a revolução espiritual que ele impõe a Florença, antes de seu fracasso e de sua execução. A corrente profética se liga com frequência às formas de contestação social, que pode se tornar puramente intelectual.
A sede de acesso aos textos sagrados e à catequização, outro elemento da religião flamboyant, não esperou Martinho Lutero (1483-1546) para se manifestar. É assim que ela aparece no centro das novas experiências pastorais encarnadas, na França, pelo bispo Guillaume Briçonnet (1472-1534) e pelo círculo de Meaux, que reunia um grupo de humanistas franceses sem apoio da realeza. Não faltam debates em torno deste acesso mais aberto e mais individual ao sagrado protagonizado pelos reformadores.
É o que veremos na próxima coluna.
Edição Filipe Dal'Bó
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