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GV CULT - Criatividade e Cultura

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18/03/2015 11h00

Por    André Dib

crédito: "Last Call" (1983-1988), de Fred Folsom. Óleo sobre tela .

Combinado não sai caro. Era por isso que sentara a mesa e tentara resolver as coisas de maneira mais fácil. Mas parece que não haveria solução sem gritaria e um emaranhado de frases sem sentido. Podia sentir sua cota de boa vontade chegar ao fim quando tateou a própria cintura. Lá estava ela, longa e gelada, uma 38 milímetros que fora do seu avô na época em que tinham fazenda.

Sempre ouvira em casa que armas não são brinquedos. Que são "instrumentos de segurança". Achava engraçado como podiam associar algo tão perigoso com a ideia de segurança. Depois que cresceu um pouco percebeu que a segurança estava apenas com quem estava atrás do instrumento de segurança, do lado do gatilho.

Nunca haviam precisado usar a arma na fazenda. Mas de tempos em tempos, quando o avô abria um barril de cachaça, uma coisa levava a outra até que estavam todos brincando de tiro ao alvo com o "instrumento de segurança". O barulho assustava as mulheres e os de pouca idade. Isso fazia parte da brincadeira também. Quando todos estava distraídos conversando alguém atirava em uma das latas que funcionavam como alvo.

O avô, já avermelhado pela bebida, dizia que na vida haveria um bocado de latas, e que era preciso estar atento a elas. Ou você atira, ou você toma susto, porque alguém vai atirar por você. Já ouvira essa lição magnífica de vida tantas vezes quanto tentou esquecê-la. Mas não era por acaso.

Nunca gostou dessa brincadeira de tiro ao alvo. Nem do barulho, nem da pontaria, nem de nada. Mas o que ficou na memória foi o cheiro de bebida e seu velho avô repetindo essa lição de vida: "ou você atira, ou vão atirar por você". Aquilo lhe perturbara em sonhos durante muitas noites. Não sabia exatamente porque, mas era um trauma.

Quando venderam a fazenda, ficou com a arma. Meio que sem ninguém saber. Um dia, ainda haviam alguns móveis e pertences para serem retirados, enquanto checava se algo era seu ou se lhe interessava, achou a 38. Apenas levou embora, só foi abrir a caixa e olhar com calma alguns anos depois.

E agora, lá estava ele, o instrumento de segurança. Estava se fazendo útil pela primeira vez em muitos anos. Talvez fosse a primeira vez em sua vida útil que seria usado para atingir algo que não fossem latas de um velho bêbado. Quando puxou o cano da cintura, a mesa ficou em silêncio. Sentiu-se realmente em segurança, talvez o avô tivesse razão. Mas logo aconteceu algo em uma velocidade mais rápido do que pudera entender.

crédito: "Fight" (1993-1994), de Fred Folsom. Óleo sobre tela.

Estavam em cima da mesa, entre murros e pontapés, entre copos e canapés. Podia ouvir coisas quebrando e gritos. Podia sentir raiva e poder. Sentia suas mãos agarrando e sendo agarradas. Por instantes fechou os olhos e tudo sumiu. Como se tudo tivesse acabado e fosse silencioso e calmo. Pôde enxergar um fundo branco e o avô andando em sua direção e dizendo muito sério "ou você atira, ou vão atirar em você".

Em seguida, a seriedade desaparece e o avô solta uma longa alta e violenta risada, mas dessa vez, não sentia o bafo de álcool. O cheiro que entrava pelas suas narinas era de sangue. Era o cheiro do fim da confusão. O cheiro que vinha logo depois de um grande estrondo de uma 38 milímetros. E, enquanto tinha forças, olhou em volta e percebeu que o velho tinha razão quando dizia aquilo: o sangue era seu.

Edição    Filipe Dal'Bó e Samy Dana

André Dib

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.