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GV CULT - Criatividade e Cultura

Anestesia

GVcult

23/10/2014 09h00

Por Vítor Steinberg.

Algumas coisas ainda têm força, capacidade, poder e potência de nos anestesiar. Ao permanecer travado, talvez boquiaberto, pinga-se a baba benigna, a grande baba dos mistérios dos filmes de Cronenberg – a volumosa saliva cósmica da qual não há um que sinta nojo, não há um que faça cara feia, não há um que deseje um mini guarda-chuva enquanto alguém fala e cospe em tua cara.

Tempos esses apocalípticos (sem eu querer vestir uma carapuça de profeta da 25 de Março), nos dá vontade de nos despedirmos e irmos embora… Os memes simpatizam a ideia: "I don't want to live on this planet anymore"… Ou quando ouvimos alguém: "Pare o mundo, quero descer"… Sempre me bateu uma leve crise de pânico nas inúmeras vezes que escuto alguém dizer isso. Parece, aos meus olhos, que a sensação de claustrofobia planetária e internacional é a nossa imensa e virtuosa epidemia da alma. A sensação de fracasso coletivo, azar da espécie e desilusão está dando conta absoluta.

Tristíssima sensação como recordar o quarteto de cordas atacando valsas vienenses enquanto o mar tragava o Titanic. Esses dias ouvi dizer de que isso foi real. Não é só no filme de James Cameron. Essa sensação de despedida da vida – e por conseguinte do cinema – é de assombrar como um fantasma shakespeariano. Seja obscurantismo ou conspiração, tenho visceralmente uma sensação de tudo estar indo embora. Há dois anos atrás eu tinha a maior vontade do mundo de namorar e manter o namoro. Hoje, por assim dizer, sinto-me livre dessa condição. A ideia de formar um casal me parece antiquada, quadrada e burra.

Mesmo efeito de estar no set, produzindo um filme. Tudo é tão ridículo e ultrapassado. Até a fita crepe é patética e inútil. Juntar a falta de dinheiro com cenário, elenco, equipe e tecnologia me parece falta de amor pela vida. Eu gostaria de grifar que ainda não sei como é fazer um filme com dinheiro.

Porém, ao ver a estreia de "Boa Sorte" (Carolina Jabor, 2014) na Mostra, só pude ficar lembrando (na escuridão da sala de projeção) desses músicos do Titanic… tocando e afundando… Em primeiro lugar, o monitor da Mostra batizou a diretora pelo apelido "Carol". Quando ela subiu e pegou o microfone, ressaltou: "Por favor, meu nome é Carolina. Odeio que me chamem de Carol". E assim começou o filme.

Os desacertos se somam e multiplicam-se à exaustão. A trilha sonora é baseada no ritmo de uma bateria sem graça, desarrimando a tudo e a todos. Uma lamentável Fernanda Montenegro passando por "Tapa na Pantera" é sem graça e artificial como guaraná Dolly. Planos mal pensados, mal decupados, mal originados, preguiçosos, ínfimos, abestalhados. A atriz gata está horrorosa, emagreceu 30kg e parece um cabide com duas bexigas de silicone. O protagonista não sustenta já no comecinho… a diretora está mais para Carol mesmo – genérica, generalizada, escorregadia, pop, frouxa do que uma Carolina – de nome completo que faz cinema e tudo.

E aí afundamos na cadeira como os músicos do Titanic… É preciso haver esperança e renovação! Esse filme com dinheiro é uma pedra no túmulo, não dá vontade de fazer mais cinema no mundo, mesmo. Fico imaginando… Como despediram-se os músicos no naufrágio, elegantes e sinceros, às vezes é necessário tocar enquanto o barco afunda.

De repente descubro uma novidade. Em minha insistente pesquisa sobre música clássica, sucessivamente vi que Haydn punha um gracioso nome sobre suas sinfonias. Temos "Milagre", "Dos Relógios"… Uma delas, "Surpresa" faz jus ao nome e, no segundo movimento, dá um susto no ouvinte atacando um tímpano forte no meio de um adagio. Mas descobrir "Farewell" (Sinfonia do Adeus) é de fazer os alicerces sacudirem. Simplesmente pois, com muito humor, Haydn promove uma situação única e deliciosa da que você não vê num concerto comum. Enquanto o último movimento acaba…. os músicos vão indo embora… deixando o maestro sozinho… abandonando o mundo, pedindo para parar para descer…. é a coisa mais triste e bela. É o como ver o mundo indo embora. E o maestro fica sozinho no final. Clique no link para ver essa maravilhosa performance com o maestro Daniel Barenboim:

www.youtube.com/watch?v=vfdZFduvh4w

É com elegância que deixaremos este mundo. Não é possível esses filmes atuais. Tem alguma coisa errada. Alguma droga exagerada, algum elixir equivocado. De certo que Beethoven nos olha com sangue nos óio, sempre furioso, com cara de emputecido e bêbado. Cara de truculento angelical.  Mas, assim como Mozart e Voltaire, o mestre Haydn estava sempre sorrindo. E como é maravilhosa essa despedida.

Edição: Samy Dana e Octavio Augusto de Barros.

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.