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GV CULT - Criatividade e Cultura

Celebração

GVcult

21/10/2014 20h00

Por André Dib.

A luz estava forte no seu rosto. Estendeu o braço e moveu o foco da luminária de lugar. Continuou lendo. Até que percebeu que, embora seus olhos pulassem de linha em linha, sua cabeça estava em outro lugar. Em um lugar onde os raios de Sol batiam na cara e não podia enxergar direito. De vez em quando acontecia isso, continuava lendo, mas seus devaneios lhe levavam embora dali.

Dessa vez estava brincando na areia. O Sol estava forte e seu pai ainda era vivo. O balde de areia parecia enorme, assim como as pequenas marolas que derrubavam seu pequeno e frágil corpo na areia, o que fazia com que ficasse com os olhos na direção do Sol e não pudesse enxergar direito. Até que uma cabeça entrou na frente da luz e, com o cessar de tanta luminosidade, pode ver o sorriso do pai, que lhe levantava alegre. Correu de volta para perto do guarda sol, onde a mãe lhes esperava. Corria muito mais rápido que o pai naquela época. Ou lhe fizeram parecer isso.

Se pegou sorrindo, agora com o livro cerrado. Deixou a leitura para trás e resolveu ler um pouco mais das memórias. Mergulhou no mar, que estava gelado. O pai lhe segurava pela cintura enquanto chacoalhava as perninhas para tentar flutuar. Mas parecia que de nada adiantava. Dessa vez a mãe não entrara junto porque já estava grávida do caçula. Lembra bem porque uma água viva lhe queimou no braço e quem teve que lhe acalmar foi seu pai. A enorme barriga da mãe lhe impedia de fazer grandes esforços.

Imaginou como seria nadar em uma barriga enorme e quentinha. Não sabia se era quentinha o tempo todo. Ou se o bebê sentia frio ou calor. Só conseguia vislumbrar a sensação de imersão em uma piscina aquecida e ter a visão turva. Uma visão turva amarelada, na verdade. Por um momento se questionou porque amarela e não vermelha, a cor do sangue. Talvez fosse meio mórbido se fosse vermelha. Mas de uma coisa tinha certeza, embora não gostasse de admitir: com certeza fedia lá dentro.

Pensou em um desses filmes de extraterrestres que um bicho sai de dentro de  outro em uma placenta gosmenta. Era mais ou menos aquilo, só que a gente achava bonito. Queria poder descobrir como era. Poder perguntar para um recém nascido ou a um sábio muito velhinho. Era engraçado isso, como a verdade das coisas está nos extremos. Muito perto da morte na verdade. Afinal, qual era o limite entre vida e morte na barriga de uma mãe? A partir de que ponto o bebê era vivo e tinha consciência? O mesmo podia dizer de um sábio muito velhinho e careca. Até que ponto estava vivo, consciente e certo de si e do que vivera? Será que não se confundia verdade, mentira, sonhos e medos depois de uma certa ideia?

Não sabia as respostas. Mas tinha certeza da ilusão de uma resposta muito próxima a morte. Como se, ao chegar a vida, fosse lhe gritada uma grande verdade, que em uma frase se espremia. Mas ao nascer e crescer fosse esquecendo essa verdade a cada segundo. A mesma coisa acontecia quando estava prestes a fechar os olhos para sempre, era gritada a mesma verdade. Tudo fazia sentido e ia embora.

Imaginou que seria impossível que houvesse um segredo tão poderoso que coubesse em uma frase. Que contasse a verdade por trás do quem somos, para onde vamos e de onde viemos. Que a paz tomasse conta da mente, ao ouvir tal verdade.

Talvez houvesse sim. Pensou que naquele momento conseguiria dizer uma verdade aos seus próprios pensamentos que lhe acalmariam. Conseguiria fazer isso com seu pai também, antes que tivesse tapado o Sol com seu enorme sorriso. Talvez pudesse dizer um segredo muito bom a todos aqueles que compartilhavam da vida e estavam próximos. Os que celebravam dia após dia. Dias ruins após dias bons e dias bons após dias ruins. Poderia lhe dizer verdades que lhe confortassem por serem simplesmente honestas verdades. Que gostava disso ou daquilo, ou que lembrou-se de quando aconteceu alguma coisa. Coisas que evidenciavam uma intersecção de duas vidas. Que tornasse real a viagem que faziam na vida.

Estendeu o braço e moveu o foco da luminária de lugar. Voltou a pensar nos raios de Sol e na areia molhada. Voltou a pensar em uma verdade que conhecia.

Edição: Samy Dana e Octavio Augusto de Barros.

AndreDib

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.